CONCEITO
DE EPIDEMIOLOGIA
Em
meados do século passado, por ocasião de uma epidemia
de cólera em Londres, John Snow (1854), considerado
o pai da epidemiologia, concluiu pela existência de
uma associação causal entre a doença e o consumo de
água contaminada por fezes de doentes, rejeitando a
hipótese de caráter miasmático da transmissão, então
em voga.
Costa
& Costa (1990), comentando a idéia veiculada no
parágrafo anterior, referem que “... Snow desenvolveu
uma teoria sobre o modo de transmissão do cólera, estudando
as epidemias em Londres em meados do século XIX, que
de maneira alguma pode ser lida como uma
associação causal entre doença e o consumo de água contaminada.
Ainda que efetivamente Snow tenha descoberto que a água
é o mecanismo de transmissão do cólera, não resta também
dúvida de que sua obra não se restringe a esse fato.
Pelo contrário, Snow busca precisar a rede de processos
que determinam a distribuição de doença nas condições
concretas de vida da cidade londrina. A leitura restrita
sobre o trabalho de Snow fixa a atenção nos achados
a respeito dos mecanismos de transmissão em detrimento
do significado do olhar do autor sobre o cotidiano,
os hábitos e modos de vida, os processos de trabalho
e a natureza das políticas públicas. É pensando a doença
em todas as suas dimensões que o autor consegue integrar
essas expressões do social em seu raciocínio sobre o
processo de transmissão".
Daquela
época até o início do século atual, a epidemiologia
foi ampliando seu campo, e suas preocupações concentraram-se
sobre os modos de transmissão das doenças e o combate
às epidemias.
A
partir das primeiras décadas, com a melhoria do nível
de vida, especialmente nos países desenvolvidos, e com
o conseqüente declínio na incidência das doenças infecciosas,
outras enfermidades de caráter não-transmissível (doenças
cardiovasculares, câncer e outras) passaram a ser incluídas
como objeto de estudos epidemiológicos, além do que,
pesquisas mais recentes, sobretudo as que utilizam o
método de estratificação social, enriqueceram esse campo
da ciência, ensejando novos debates.
Atualmente,
além de dispor de instrumental específico para análise
do perfil de saúde-doença na população, a epidemiologia
possibilita aclarar questões levantadas pelas rotinas
das ações de saúde, gerando novos conhecimentos. Seu
fim último é contribuir para a melhoria da qualidade
de vida e o soerguimento do nível de saúde das coletividades
humanas.
Uma
definição precisa do termo epidemiologia não é fácil:
sua temática é dinâmica e seu objeto, complexo. Pode-se,
de uma maneira simplificada, conceituá-la como: ciência que estuda o processo saúde-doença em coletividades humanas, analisando
a distribuição e os fatores determinantes das enfermidades,
danos à saúde e eventos associados à saúde coletiva,
propondo medidas específicas de prevenção, controle,
ou erradicação de doenças, e fornecendo indicadores
que sirvam de suporte ao planejamento, administração
e avaliação das ações de saúde.
Esta
definição pode ser aclarada pelo aprofundamento de algumas
concepções nela expressas:
a)
a priori, independente de qualquer análise, pode ser dito que a atenção
da epidemiologia está voltada para as ocorrências, em
escala massiva de doença e de não-doença envolvendo
pessoas agregadas em sociedades, coletividades, comunidades,
grupos demográficos, classes sociais ou quaisquer outros
coletivos formados por seres humanos;
b) o
universo dos estados particulares de ausência de saúde
é estudado pela epidemiologia sob a forma de doenças
infecciosas (sarampo, difteria, malária etc.), não-infecciosas
(diabetes, bócio endêmico, depressões etc.) e agravos
à integridade física (acidentes, homicídios, suicídios);
c)
considerando o conjunto de processos sociais
interativos que, erigidos em sistema, definem a dinâmica
dos agregados sociais, um em especial constitui o campo
sobre o qual trabalha a epidemiologia: é o processo
saúde-doença. Segundo Laurell (1983), o processo
saúde-doença da coletividade pode ser entendido como
“o modo específico pelo qual ocorre, nos grupos, o processo
biológico de desgaste e reprodução, destacando como
momentos particulares à presença de um funcionamento
biológico diferente, com conseqüências para o desenvolvimento
regular das atividades cotidianas, isto é, o surgimento
da doença”.
Colocada
neste contexto, a expressão saúde-doença é um qualificativo
empregado para adjetivar genericamente um determinado
processo social, qual seja o modo específico de passar
de um estado de saúde para um estado de doença e o modo
recíproco, Descontextualizada, a expressão saúde-doença
refere-se a uma ampla gama que vai desde “o estado de
completo bem estar físico, mental e social” até o de
doença, passando pela coexistência de ambos em proporções
diversas. A ausência gradativa ou completa de um destes
estados corresponde ao espaço do outro e vice-versa;
d)
entende-se por distribuição
o estudo da variabilidade da freqüência das doenças
de ocorrência em massa, em função de variáveis ambientais
e populacionais, ligadas ao tempo e ao espaço.
e)
A análise dos fatores
determinantes envolve a aplicação do método epidemiológico
ao estudo de possíveis associações entre um ou mais
fatores suspeitos e um estado característico de ausência
de saúde, definido como doença;
f)
A prevenção visa empregar medidas de profilaxia a fim de impedir que
os indivíduos sadios venham a adquirir a doença; o controle visa baixar a incidência a níveis mínimos: a erradicação,
após implantadas as medidas de prevenção consiste na
não-ocorrência de doença, mesmo em ausência de quaisquer
medidas de controle; isto significa permanência da incidência
zero (a varíola está erradicada desde 1977).
A
Associação Internacional de Epidemiologia (IEA), em
seu “Guia de Métodos de Ensino” (1973), define epidemiologia
como “o estudo
dos fatores que determinam a freqüência e a distribuição
das doenças nas coletividades humanas. Enquanto
a clínica dedica-se ao estudo da doença no indivíduo,
analisando caso a caso, a epidemiologia debruça-se sobre
os problemas de saúde em grupos de pessoas – às vezes
pequenos grupos – na maioria das vezes envolvendo populações
numerosas”.
"1.
Descrever a distribuição e a magnitude dos problemas
de saúde nas populações humanas.
2.
Proporcionar dados essenciais para o planejamento,
execução e avaliação das ações de prevenção, controle
e tratamento das doenças, bem como para estabelecer
prioridades.
3.
Identificar fatores etiológicos na gênese das enfermidades”.
Muitas
doenças, cujas origens até bem recentemente não encontravam
explicação, têm tido suas causas esclarecidas pela metodologia
epidemiológica, que tem por base o método científico
aplicado da maneira mais abrangente possível a problemas
de doenças ocorrentes em nível coletivo.
Hiroshi
Nakajima, diretor da Organização Mundial de Saúde, por
ocasião da 12ª Reunião Científica Internacional da Associação
Internacional da Epidemiologia (1990), analisando o
alcance da epidemiologia e concentrando seus comentários
sobre a epidemiologia na AIDS, comenta que: “O descobrimento
desta enfermidade devemo-lo a epidemiologia! A AIDS
foi reconhecida pela primeira vez como uma enfermidade
em 1981, antes que o vírus da imunodeficiência humana,
dois anos mais tarde, fosse identificado, ou que se
suspeitasse que era o agente causador da AIDS.
A
observação epidemiológica anotou a prevalência de uma
combinação curiosa e inexplicável de manifestações clínicas
de outros estados
patológicos: astenia, perda de peso, dermatose, deterioração
do sistema imunológico e o sarcoma de Kaposi, assim
como a presença de “infecções oportunistas”, como a
pneumonia por Pneumocystis
carinii. Ainda hoje em dia, é este complexo de sinais
clínicos, em combinação com o resultado positivo da
prova de HIV, o que define um “caso de AIDS”. Pode ser
o HIV positivo e, ainda assim, não ser portador da AIDS.
Ademais, foi através da análise epidemiológica que inicialmente
a síndrome foi relacionada com certos grupos de população
e comportamentos de risco conexos. Se enfocamos a AIDS
como um epidemia mundial, ela se nos apresenta como
algo novo e súbito; porém se o nosso ponto de vista
é a AIDS como doença, e o vírus como sua causa, concluímos
que nenhum dos dois são novos; pelo menos datam dos
anos 50. Fizeram falta as ferramentas de epidemiologia
para nos dizer que enfrentávamos uma patologia discreta
e letal”.
Através
da epidemiologia, Gregg, na Austrália, em 1941, descobriu
a associação existente entre malformações congênitas
e rubéola adquirida pela mãe durante os primeiros meses
de gestação.
Leucemia
na infância, provocada pela exposição aos raios X durante
a gestação; trombose venosa relacionada ao uso de contraceptivos
orais; ingestão de talidomida e o aparecimento de numerosos
casos de focomelia; hábito de fumar e câncer de pulmão;
cegueira em crianças nordestinas subnutridas e sua relação
com a avitaminose A; mortalidade
infantil e classes sociais; são alguns dentre
os inúmeros exemplos de associações estudadas pelo método
epidemiológico.
A
epidemiologia é o eixo da saúde pública. Proporciona
as bases para avaliação das medidas de profilaxia, fornece
pistas para diagnose de doenças transmissíveis e não
transmissíveis e enseja a verificação da consistência
de hipóteses de causalidade. Além disso, estuda a distribuição
da morbidade a fim de traçar o perfil de saúde-doença
nas coletividades humanas; realiza testes de eficácia
e de inocuidade de vacinas desenvolve a vigilância epidemiológica;
analisa os fatores ambientais e sócio-econômicos que
possam ter alguma influência na eclosão de doenças e
nas condições de saúde; constitui um dos elos de ligação
comunidade/governo, estimulando a prática da cidadania
através do controle, pela sociedade, dos serviços de
saúde.
Ainda,
segundo Nakajima (1990): “A epidemiologia não se limita
a avaliar a situação sanitária e sócio-econômica existente
(ou passada). Se aceitarmos o critério mais amplo do
prof. Cruiskshank, teremos que insistir na necessidade
de avaliação das tendências futuras
, isto é, uma epidemiologia prospectiva”. A pergunta
é: o que nos dizem as tendências atuais sobre a provável
situação futura para a qual teremos que fazer planos
e tomar (ou não tomar) medidas corretivas?Qual será
o provável resultado amanhã? Por conseguinte, estamos
presenciando o surgimento de uma nova dimensão na ciência
da epidemiologia, que será muito importante para o planejamento,
a dotação dos recursos, o manejo e a avaliação da saúde,
e que poderia afetar o curso futuro da história humana”.
Autores
norte-americanos, europeus e latino-americanos, entre
os quais se destacam Mac Mahon (1975), Leavel &
Clark (1976), Barker (1976), Lilienfeld (1976), Forattini
(1976), Belda (1976), Mausner & Bahn (1977), Rojas
(1978), Colimon (1978), Jenicek & Cleroux (1982),
definem epidemiologia de modo bastante semelhante, tendo
como ponto comum “o estudo da distribuição das doenças
nas coletividades humanas e dos fatores causais responsáveis
por essa distribuição”.
Esse
conceito toma por base relações existentes entre os
fatores do ambiente – físicos, químicos e biológicos
– do agente e do hospedeiro ou suscetível. Dentro desta
concepção, os fatores culturais e sócio-econômicos são
partes integrantes do sistema, contribuindo à sua maneira,
associados a outros fatores causais, para a eclosão
em massa de doenças e agravos à saúde.
Outros autores,
especialmente latino-americanos, entre os quais se salientam
Uribe (1975), Laurell (1976), Tambellini (1976), Arouca
(1976), Cordeiro (1976), Breihl (1980), Rufino &
Pereira (1982), Luz (1982), Garcia (1983), Barata (1985),
Marsiglia (1985), Carvalheiro (1986), Possas (1989),
Goldbaum (1990) e Loureiro (1990), avançam em direção
a uma nova epidemiologia cuja visão dialética se posiciona
contra a fatalidade do “natural” e do “tropical”. Dá-se
ênfase ao estudo da estrutura sócio-econômica fim de
explicar o processo saúde-doença de maneira histórica,
mais abrangente, tornando a epidemiologia um dos instrumentos
de transformação social. Essa nova epidemiologia, também
chamada de epidemiologia
social, no conceito de Breihl, “deve ser um conjunto
de conceitos, métodos e formas de ação prática que se
aplicam ao conhecimento e transformação do processo
saúde-doença na dimensão coletiva ou social”.
Por outro
lado, mostrando ser a epidemiologia uma ciência viva,
em fase de crescimento e transformação, rica internamente
em diversidades criativas, alguns autores têm se dedicado
à sua crítica sob
o ponto de vista epistemológico, buscando estabelecer
fundamentos e analisar conceitos básicos ( Almeida Filho,
1989; Gonçalves, 1990; Costa & Costa, 1990; Ayres,
1992).
HISTÓRIA
NATURAL DA DOENÇA
"Sob
o ponto de vista do bem público, uma das implicações
práticas da epidemiologia é que o estudo das influências
externas tornam a prevenção possível, mesmo quando a
patogênese da doença concernente
não é ainda compreendida. Mas isto não quer dizer que
a epidemiologia seja, de alguma maneira, oposta ao estudo
de mecanismos ou, reciprocamente, que o conhecimento
do mecanismo não seja as vezes crucial para a prevenção”.
(Acheson, 1979). O autor, embora sem se referir
explicitamente, opina que a prevenção se faz com base
no conhecimento da história natural da doença.
História
natural da doença é o nome dado ao conjunto de processos
interativos compreendendo “as inter-relações do agente,
do suscetível e do meio ambiente que afetam o processo
global e seu desenvolvimento, desde as primeiras forças
que criam o estímulo patológico no meio ambiente, ou
em qualquer outro lugar, passando
pela resposta do homem ao estímulo, até às alteração
que levam a um defeito, invalidez, recuperação ou morte”.
(Leavell & Clark, 1976).
A
história natural da doença, portando, tem desenvolvimento
em dois períodos seqüenciados: o período epidemiológico
e o período patológico. No primeiro, o interesse é dirigido
para as relações suscetível-ambiente, no segundo, interessam
as modificações que se passam no organismo vivo.
Abrange,
portanto, dois domínios interagentes, consecutivos
e mutuamente exclusivos, que se completam: o
meio ambiente, onde ocorrem as pré-condições, e o meio
interno, locus da doença, onde se processaria,
de forma progressiva, uma série de modificações bioquímicas,
fisiológicas e histológicas, próprias de uma determinada
enfermidade. Alguns fatores são limítrofes. Situam-se,
de forma indefinida, entre os condicionantes pré-patogênicos
e as patologias explícitas. São anteriores aos primeiros
transtornos vinculados a uma doença específica, sem
se confundir com a mesma e, ao mesmo tempo, são intrínsecos
ao organismo do suscetível. Em uma situação normal,
em ausência de estímulos, jamais se exteriorizariam
como doenças. Em presença destes fatores intrínsecos
preexistentes, os estímulos externos transformam-se
em estímulos patogênicos. Dentre as pré-condições internas,
citam-se os fatores hereditários, congênitos ou adquiridos
em conseqüência de alterações orgânicas resultantes
de doenças anteriores.
O
homem se faz presente em todas estas etapas.
É
gerador das condições sócio-econômicas favorecedoras
das anomalias ecológicas predisponentes a alguns dos
agentes diretamente responsáveis por doenças. Ao mesmo
tempo, é a principal vítima do contexto de agressão
à saúde por ele favorecido.
Na
expressão história natural da doença, o "natural"
não pode e não deve ser entendido como uma declaração
de fé de ordem filosófica, negando o social e privilegiando
o natural. Na verdade, não há como se negar que, na
história da doença, o social e o natural têm, cada qual,
sua hora e sua vez.
Ao
tratar a história natural de uma doença em particular
como sendo uma descrição de sua evolução, desde os seus
primórdios no ambiente biopsicossocial até seu surgimento
no suscetível e conseqüente desenvolvimento no doente, deve-se ter um esquema
básico, de caráter geral, onde ancorar as descrições
específicas. Este esquema geral, arbitrário, é apenas
uma aproximação da realidade, sem pretensão de funcionar
como uma descrição da mesma (Fig. 2-1). A história natural
das doenças, sob este ponto de vista, nada mais é do
que um quadro esquemático que dá suporte á descrição
das múltiplas e diferentes enfermidades. Sua utilidade
maior é de apontar os diferentes métodos de prevenção
e controle, servindo de base para a compreensão
de situações reais e específicas, tornando operacionais
as medidas de prevenção.
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