EMENTA
- E dever ético e legal do médico manter
sigilo quanto ao prontuário do paciente, só
o podendo revelar com autorização expressa
deste ou seu representante legal. Disposições
instituídas no resguardo do direito do paciente.
Constituição Federal. Código de
Ética Médica. A requisição,
mesmo judicial, que implique retirada do prontuário
do hospital, constitui coação ilegal.
Precedentes jurisprudenciais, inclusive do STF Em se
tratando de investigação de crime de ação
pública incondicionada, é cabível,
no resguardo do interesse social e desde que não
implique procedimento criminal contra o paciente, pôr-se
o prontuário à disposição,
para exame por perito legista, restrito aos fatos sob
investigação e não sobre o conteúdo
do prontuário, e sob sigilo pericial. Revogação
da Resolução CFM n° 999/80.
Palavras-chave:
prontuário, requisição, exigência,
autorização, coação, constrangimento,
sigilo, solicitação judicial, perito legista,
responsabilidade, diretor clínico.
SUPPLYING
DOCUMENTS FROM A PATIENT'S MEDICAL RECORD TO POLICE
AUTHORITIES, PUBLIC ATTORNEYS AND JUDGES
Keywords:
requisition, demand, authorization, coercion, compulsion,
confidentiality, judicial request, forensic medical
expert, responsibility, clinical director
I
- PARTE EXPOSITIVA
Trata-se
de consulta encaminhada pelo Conselho Regional de Medicina
do Estado de Minas Gerais, feita pelo Dr. Carlos Nunes
Senra, diretor do Hospital Municipal Odilon Behrens,
de Belo Horizonte.
O
consulente busca orientação sobre que
atitude tomar quanto à requisição
requerida por promotores de Justiça, delegados
de Polícia, juízes, Conselhos de Saúde
e Câmara Municipal, solicitando prontuários
de pacientes e seus exames complementares para instruir
processos de variada natureza. O consulente vem se orientando
pelos arts. 1 1 e 102 do Código de Ética
Médica. Conhece, igualmente, o Parecer nº
133/96, da AJ deste Conselho Federal, bem como acórdão
do STF proferido no Habeas Corpus 91.218-5, relativamente
a não disponibilidade de prontuário por
diretor do Santa Casa de São Paulo, em delito
de aborto, de ação pública incondicionada.
No
entanto, refere estar sendo constrangido a fornecer
as prontuários ante a invocação
por autoridades policiais e judiciais, da Resolução
CFM nº 999/80, especialmente com relação
ao seu art. 2°, que obriga o médico a fornecer
informações nos casos de crimes de ação
pública que não exponham a parte interessada
a procedimento criminal.
Como praticamente todas
as demandas que chegam ao hospital tratam de denúncia
de lesões corporais, que, tecnicamente, são
crimes de ação publica incondicionada,
pergunta:
Em que condições
o diretor clínico de uma instituição
hospitalar pode e deve fornecer documentos de internação
de pacientes a delegados de Polícia, promotores
e juízes?
O diretor clínico deve
sempre solicitar a manifestação expressa
do paciente ou de seu responsável legal em face
de tais solicitações, mesmo nos casos
em que este não figure como réu?
Em que casos, na prática,
o diretor clínico pode negar a delegados, promotores
e juizes o envio de tais documentos?
O citado acórdão
do STF não desobriga o médico diretor
clínico deste envio?
Em caso de obrigatoriedade de envio,
o diretor clínico não estaria quebrando
o sigilo profissional, vez que praticamente todas as
solicitações tratam de lesões corporais?
II-
DO PARECER
O
segredo médico a instituto milenar, cuja origem
já constava no juramento de Hipócrates:
'O que, no exercício
ou fora do exercício e no comércio do
vida, eu vir ou ouvir, que não seja necessário
revelar, conservarei como segredo'.
"Para a classe médica,
o segredo é algo que não se pode dissociar
do exercício da sua profissão. No dizer
de Gonzaga, pelas peculiares condições
em que exerce o seu mister, o médico tem freqüentes
vezes diante de si, abertos em leque, informes íntimos
da mais variada qualidade. Colhe não apenas esclarecimentos
reservados sobre o cliente, mas sobre sua família,
parentes próximos e até mesmo alusivos
a terceiros àqueles ligados. Penetra no recesso
dos tares. Necessita conhecer as causas da moléstia
em exame, que podem desembocar em delicadas origens:
comportamentos viciosos,eticamente reprováveis
ou delituosos, dificuldades econômicas, disputas
domésticas, etc.
"Nem sempre o diagnóstico
da moléstia ou da lesão física
sofrida pelo paciente será o fato que este deseja
manter em segredo. Em alguns casos, o que se pretende
manter escondido do domínio público são
as circunstancias que ensejam o surgimento da moléstia
ou da lesão." (BARROS, Marco Antônio
de. Sigilo Profissional. Reflexos do violação
no âmbito dos provas ilícitas. RT 733/423)
Hoje, apresenta-se com
foro constitucional, uma vez que instituído como
garantia individual à inviolabilidade da intimidade,
da vida privada, da imagem e da honra - art. 5º,
inc. X, da CF.
Assim,
o prontuário médico só pode ser
fornecido quando houver expressa autorização
do paciente, cujo direito o sigilo visa proteger. Nesse
sentido, as disposições do Código
de Ética Médica, em seus arts. 11 e 102,
tem força de lei, porque expressamente mantêm
o previsto no Lei n° 3.268/57 e seu decreto regulamentador
- n.° 44.045/58 - conforme entendimento tanto do
STF (HC 39.308-SP) como do STJ (REsp 159527-RJ):
"Artigo 11: o medico deve
manter sigilo quanto as informações confidenciais
de que tiver conhecimento no desempenho de suas funções.
O mesmo se aplica ao trabalho em empresas, exceto nos
casos em que seu silencio prejudique ou ponha em risco
a saúde do trabalhador ou da comunidade.
"Artigo 102: (é
vedado ao médico) Revelar fato de que tenha conhecimento
em virtude do exercício de sua profissão,
salvo por justa causa, dever legal ou autorização
expressa do paciente.
"Parágrafo-único
- Permanece essa proibição:
a. Mesmo que o
fato seja de conhecimento público ou que o paciente
tenha falecido.
b. Quando do depoimento
como testemunha. Nesta hipótese o médico
comparecera perante a autoridade e declarará
seu impedimento."
É
preciso, pois, passar à análise pormenorizada
do real significado das expressões justa causa,
dever legal e autorização expressa do
paciente, contidas no art. 102 do CEM.
A justa causa, como fato incidental
e liberatório da revelação, "funda-se
na existência de estado de necessidade: é
a colisão de dois interesses, devendo um ser
sacrificado em benefício do outro; no caso, a
inviolabilidade dos segredos deve ceder a outro bem
interesse. Há, pois, objetividades jurídicas
que a ela preferem, donde não ser absoluto o
dever do silêncio ou sigilo profissional"
(NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, 17a ed.,
v. 2, 1981, p. 209 ).
A jurisprudência
a respeito, dessa forma se pronuncia: "Seria absurdo
que uma lei protegesse o interesse particular, embora
de valor social, com prejuízo e dano para a coletividade.
A vida em comum nos sociedades deve restringir direitos
para evitar inconvenientes paro outros direitos, mormente
gerais." (RT 562/409)
O mesmo autor, antes
mencionado - BARROS, Marco Antônio de - acrescenta:
"Alguém que
revele, sem justa causa, segredo, de que tem ciência
em razão de função, ministério,
ofício ou profissão, e cuja revelação
possa produzir dano a outrem, está sujeito a
suportar a pena de detenção de três
meses a um ano, ou multa (art. 154, do CP).”
"Três rápidas
observações se fazem acerca do dispositivo
de ordem material. Uma delas consiste no sereno entendimento
doutrinário no sentido de que para configuração
da infração penal o dano produzido não
se restringe ao aspecto econômico, abrangendo
o prejuízo de ordem moral, pública, particular,
individual ou familiar sofrido pelo interessado na mantença
do segredo. A segunda observação diz respeito
ao sujeito ativo do crime, ou seja, aquele que revela
o segredo de que teve ciência em razão
de função, ministério, ofício
ou profissão.”
"A mais objetiva
diferenciação entre os tipos de atividade
profissional é apresentada por Paulo José
da Costa Jr., para quem função é
o encargo recebido por lei, decisão judicial
ou contrato (tutor, curador, inventariante, síndico,
diretores de escola, hospitais ou empresas); ministério
é o mister que tem origem em determinada condição
social, de fato ou de direito (padre, freira, missionário,
assistente social); ofício é a atividade
remunerada, mecânica ou manual (sapateiro, ourives,
cabeleireiro, costureiro, etc.); profissão é
a atividade remunerada, exercida com habitualidade,
via de regra de cunho intelectual.”
"Finalmente, a terceira
observação condiz com a atipicidade do
fato quando a revelação seja feita com
justa causa. A justa causa identifica-se com o justo
impedimento de manter o sigilo, ou com a existência
do necessidade de confidência, e ela só
pode ser aquilatada no caso concreto. Incluem-se obrigatoriamente
neste rol o estrito cumprimento do dever legal, o estado
de necessidade e a própria legítima defesa
do confidente.”
"Sobre isto, oportuna
é a advertência feita par Hermenegildo
Rego, ao se questionar se a convocação
judicial para depor no processo civil constitui, para
o depositário do segredo profissional, justa
causa suscetível de legitimar sua revelação.
O próprio articulista responde que a revelação
do segredo profissional, pelo só fato de ter
sido feita em juízo, não deixa de configurar
o crime, ressaltando que a revelação de
um segredo profissional, feita em juízo, como
fora dele, se consubstanciada em justa causa não
constituirá crime. Mas a mera situação
- depoimento em juízo - não representa,
por si, justa causa.”
Encontramos outra hipótese
de justa causa para a quebra do sigilo médico
no tocante aos portadores do vírus da imunodeficiência
humana, conforme parágrafo único do artigo
2° do Resolução CFM n° 1.359/92,
in verbis:
"O
sigilo profissional deve ser rigorosamente respeitado
em relação aos pacientes com AIDS; isso
se aplica inclusive aos casos em que a paciente deseja
que sua condição não seja revelada
sequer aos familiares, persistindo a proibição
de quebra de sigilo mesmo após a morte do paciente.
Será permitida a quebra do sigilo (...) por justa
causa (proteção a vida de terceiros: comunicantes
sexuais ou membros de grupos de use de drogas endovenosas,
quando a próprio paciente recusar-se a fornecer-Ihe
a informação quanta à sua condição
de infectado)."
Por fim, é importante
salientar que a instituto da justa causa não
deve servir para obrigar o médico a revelar fato
sob o título do sigilo profissional. O profissional
não pode ser impelido a realizar determinada
conduta será que a lei o obrigue.
No mesmo sentido, concluiu
o cons. Hercules Sidnei Pires Liberal, no Parecer CFM
n° 24/90: "(...) o medico somente poderá
revelar o segredo médico se a caso estiver contido
nas hipóteses de 'justa causa', determinadas
exclusivamente pela legislação e não
pela autoridade(...)".
Outra circunstância
importante que afasta a dever de sigilo e, conseqüentemente,
torna lícita a revelação, senão
a caracteriza como impositiva, consiste no dever legal.
Aliás, no capítulo que trata sobre os
crimes contra a saúde pública está
prevista a infração penal denominada omissão
de notificação de doença, que se
consumara quando o médico deixar de denunciar
à autoridade pública doença cuja
notificação é compulsória,
ficando sujeito à aplicação da
pena de detenção de seis meses a dois
anos, e multa (art. 269 do CP e Portaria n° 1.100/96
do Ministério da Saúde). Outro exemplo
dessa modalidade de dever imposto ao médico encontrase
na lei que trata do planejamento familiar, que submete
o médico a idêntica sanção,
privativa de liberdade e pecuniária, se deixar
de notificar a autoridade sanitária as esterilizações
cirúrgicas que realizar (art. 16 do Lei n2 9.263,
de 12.1.1996).
Também a Lei n°
3.688/41 (Lei de Contravenções Penais)
impõe um dever legal ao profissional médico
no exercício da medicina, conforme o inciso II
do art. 66: "Deixar de comunicar à autoridade
competente crime de ação pública,
de que teve conhecimento no exercício da medicina
ou de outra profissão sanitária, desde
que a ação penal não dependa de
representação e a comunicação
não exponha o cliente a procedimento criminal."
A outra situação
que libera o médico do dever de manter sigilo
ocorre quando há autorização expressa
do paciente para a revelação do fato.
É claro que a autorização em si
não obriga o médico a depor sobre o que
souber ou tiver conhecimento acerca do seu cliente,
descoberto em razão do exercício de sua
profissão. Aqui também nos parece que
a decisão sobre a revelação, ou
não, se transfere para a consciência do
médico, a quem caberá sobre ela posicionar-se.
Também e o já
referido doutrinador -Marco Antonio de Barros que refere:
"Mas o que mais tem atormentado nossos tribunais
no que se refere ao sigilo médico não
a propriamente o seu depoimento testemunhal em juízo,
mas sim os desentendimentos que derivam do recusa por
parte de médicos e diretores de hospitais em
atender as requisições feitas por juízes
para que sejam apresentadas as fichas clínicas
de pacientes e prontuários médicos".
"Cabe indagar-se:
tais informes estariam acobertados pelo apanágio
sigilo? Impõe-se ou não a obrigatoriedade
de apresentação dos fichas clínicas
e prontuários médicos ao juiz?
"Constantes e acalorados
são, as debates que cercam esta questão,
propiciando o surgimento de posições extremadas,
como aquela sustentada por Moreira de Carvalho, para
quem 'existe justa causa para o Poder Judiciário
requisitar informações e cópias
de fichas clínicas, sendo a prestação
por parte de médicos e hospitais perfeitamente
legal, não configurando qualquer tipo de infração,
pois a revelação não é leviana
e sim técnica, clara e objetiva, para responder
aos interesses da sociedade. O não-atendimento
da requisição importa no crime de desobediência'.
"Não concordamos
com esse posicionamento. Preferimos acompanhar a colocação
feita por Wolfgang Stein que, ao citar Eduardo Espínola
Filho, anotou que a justa causa para compelir ao desnudamento
do segredo médico só pode ser um motivo
legal, isto é, uma causa reconhecida pelo legislador
como derrogatória do direito dever de silenciar.
Aliás, a inteligência dos dispositivos
legais que envolvem o segredo profissional médico
foi enfrentada com impar profundidade pela mais alta
Corte do País, cujo julgador tornou-se famoso
pela riqueza dos votos exarados por seus eminentes ministros,
estando publicado no RT 562/407, donde se abstrai que
'a pública potestade só forçara
o desvendar de fato sigiloso se a tanto autorizada por
específica norma de lei formal. Trata-se de atividade
totalmente regrada, prefixados as motivos pelo legislador,
a não comportar a avaliação discricionária
da autoridade administrativa ou judiciária do
que possa constituir justa causa para excepcionar o
instituto jurídico da guarda do segredo profissional.
Este tutela a liberdade individual e a relação
de confiança que deve existir entre profissional
e cliente, para a proteção de um bem respeitável,
como o é o direito à salvação
adequada da vida ou da saúde. No embate com o
direito de punir, o Estado prefere aqueles outros valores'.
"Encontramos apoio
para esta tese em venerando acórdão do
TJSP, relatado pelo Desembargador Geraldo Games, publicado
no RT 567/83, com a seguinte ementa: 'Embora a obrigatoriedade
do sigilo profissional não se apresente em caráter
absoluto, admitindo exceções, também
esbarra em restrições o poder ou faculdade
da autoridade em requisitar informes ou elementos para
instruir processos criminais. Assim, não se cuidando
de crimes relacionados com a prestação
de socorro medico ou de moléstia de comunicação
compulsória, em que fica o profissional desonerado
do aludido sigilo, é de se ter por subsistente
cuidando-se de tratamentos particulares, seja no tocante
à espécie de enfermidade, seja quanto
ao diagnóstico ou à terapia aplicada.
Por isso, neste mandado de segurança entendeu-se
estar caracterizado o constrangimento ilegal, decorrente
da intimação judicial feita a médico
e hospital para apresentar as fichas clínicas
e prontuários da vítima de suicídio,
sob pena de responsabilidade e desobediência.
Entendeu-se, afinal, ser inadmissível a intimação
por ofensa ao sigilo profissional, constatando-se, ademais,
a ausência de justa causa para tal exigência'.
"Existem outros
exemplos na jurisprudência confirmando o respeito
que se devota ao sigilo médico. Conforme se verifica
julgado prolatado pelo TASP, publicado no RT 643/304,
ao proceder o interrogatório judicial o réu
teria afirmado ser portador do vírus do Aids.
Diante disso, o juiz requisitou informações
ao hospital, sob pena de desobediência. Impetrado
habeas corpus em favor da médica, seguiu-se a
edição do acórdão relatado
pelo juiz Walter Swensson, de cujo teor se destaca:
'Existem restrições ao poder ou faculdade
do autoridade judiciária de requisitar informações
no que se refere a tratamento médico a que está
submetida pessoa, seja no pertinente a espécie
de enfermidade, seja quanto ao diagnóstico ou
à terapia aplicada. O sigilo profissional a que
está sujeito o médico só pode ser
dispensado para fornecimento de informe ou elementos
para instrução de processos-crime que
visem a apuração de infrações
criminais relacionados com a prestação
de socorro médico ou moléstia de comunicação
compulsória. Assim, não caracteriza crime
de desobediência a conduta do facultativo que
deixa de atender a requisição judicial
de informações sobre o estado de saúde
de réu em processo-crime sob a violação
de sigilo profissional, uma vez que não necessária
a providência a instrução de processo-crime,
podendo, ademais, as informações respectivas,
devidamente atualizadas, ser obtidas através
de inspeção médico na própria
comarca ou em hospital da rede penitenciária,
sendo irrelevante o fato de ter o interessado anuído
ao seu fornecimento se tal anuência não
constava do ofício respectivo, licito, portanto,
a medico supô-la inexistente"' (op. cit.
n° 01).
Conseqüentemente,
a requisição judicial, por si só,
não é "justa causa", conforme
estabelecido pelo STF no HC retromencionado - HC - 39.308-SP-
relator ministro Pedro Chaves, cuja ementa transcrevemos:
"Segredo profissional.
Constitui constrangimento ilegal a exigência de
revelação de sigilo e participação
de anotação constante das clinicas e hospitais.
Habeas Corpus concedido".
A mesma excelsa Corte,
por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário
n.º 91.218-SP, sendo relator o min. Djaci Falcão
(RTJSTF 101/676), estabeleceu que a apresentação
do prontuário e anotações só
tem cabimento quando consentida pelo paciente, ou quando
não for em detrimento deste, e ainda com a ressalva
de que tais documentos devem ser APENAS POSTOS A DISPOSIÇÃO
PARA PERÍCIA MÉDICA, SOB SIGILO PERICIAL.
Também
é do STF o seguinte aresto, assim ementado:
"É constrangimento
ilegal exigir-se de clínica ou hospital a revelação
de suas anotações sigilosas" (RTJ
101 /176) - "Apud" Celso Delmanto-"Código
Penal Comentado".
Na mesma fonte-a obra
de Celso Delmanto- colhem-se ainda as seguintes manifestações
jurisprudenciais:
"O sigilo médico
só pode ser dispensado para instrução
de processos-crime que visem à apuração
de infrações relacionadas com a prestação
de socorro médico, ou moléstia de comunicação
compulsória" (TACrSP - rt 643/304).
"FICHA MÉDICA:
colocada ela à disposição do perito,
que não está preso a sigilo profissional,
mas só ao segredo pericial, não se pode
exigir sua entrega em juízo" (STF - RT 101/676)
(TRATA-SE DE TRECHO DO ACÓRDÃO SUPRA MENCIONADO
- note do parecerista).
"FICHA MÉDICA:
O HOSPITAL NÃO ESTÁ OBRIGADO A ENTREGÁ-LA
(TACrSP - 479/326).
Além disso, o
dever legal só existe QUANTO à COMUNICAÇÃO,
nos casos de doença de notificação
compulsória (art. 269 do CP) e de crime de ação
pública, quando não exponha o paciente
a processo criminal (art. 66 da Lei das Contravenções
Penais). Veja-se que o núcleo penal em tais casos
está na OMISSÃO DE COMUNICAÇÃO,
e não no dever de enviar prontuário, como
parece vem sendo entendido por autoridades requisitantes.
O médico está
sujeito por dever ético e legal ao seu Código
de Ética, que, como lei, atende à cláusula
pétrea da CF, que é o direito individual
à privacidade.
Poder-se-ia cogitar de
que na situação posta em liça -
crimes de ação pública -, em que
se requisita o prontuário da vítima, haveria
embate entre o direito individual (da vítima),
que obriga ao sigilo, e o direito da sociedade de apurar
o crime. Isso parece ter sido o móvel da requisição
judicial, que buscaria suporte no resguardo do interesse
social ou público.
Todavia, assim não
é, data venia, e o colendo STF o expressou muito
bem no HC citado e também no RExt retro mencionado.
O dever de guarda do prontuário não pode
ser quebrado pelo médico (hospital ou clínica)
sem a autorização do paciente. A solução
foi claramente posta pelo Pretório Excelso no
RExt já referido quando alude que o hospital
PODE POR À DISPOSIÇÃO O PRONTUÁRIO
PARA PERÍCIA (médico legista), sob sigilo
pericial.
A razão claramente
é a proteção do indivíduo
e é até singela - é que o prontuário
não abarca só o fato em si (a patologia
apresentada) na internação, mas toda a
situação de saúde do paciente,
QUE PODE TER TODO INTERESSE - E A CONSTITUIÇÃO
LHE GARANTE TAL DIREITO - DE NÃO VER A SUA VIDA
DEVASSADA.
Nisso, há também
um aspecto social de grande importância, especialmente
nos dias que correm, além da questão do
direito individual: tornando-se rotineira a requisição
judicial do prontuário médico de alguém,
o paciente, sabedor desse fato, poderá deixar
de revelar a seu médico assistente aspectos importantes
de sua vida (certas patologias), ante o receio de vê-los
revelados. Isso causa, na verdade, GRAVE PERIGO SOCIAL,
pois a omissão de certos pormenores de saúde
podem transformar-se em grave RISCO SOCIAL (ex. o paciente
poderá não revelar ser portador de HIV,
de tuberculose, etc., quando esteja sendo tratado de
outra doença...).
Afigura-se que a autoridade
judicial, bem como o órgão do Ministério
Público ou a autoridade policial no exercício
de seu poder-dever de investigação de
delito de ação pública não
podem deixar de lado tais preocupações
com o cumprimento da lei e da Constituição,
cujas disposições repousam exatamente
no conjunto dos interesses - o individual e o social.
Não se nega o dever de apuração
e de cooperar com a apuração de delito
grave e de ação pública. Mas a
solução não pode ser, como diz
o egrégio STF, a pretexto de apurar um crime
cometer outro (quebra do sigilo médico) - art.
154 do CP. A solução é a apontada
por aquela alto Corte - põe-se à disposição
NO HOSPITAL OU CLÍNICA - a documentação
para que ali se realize a necessária perícia,
QUE HÁ DE SER RESTRITA AOS FATOS DA CAUSA EM
QUESTÃO (APURAÇÃO DE HOMICÍDIO,
LESÃO GRAVE, ETC., NO CASO) e não sobre
a totalidade do conteúdo do prontuário
que pode ter informações que só
ao paciente e ao seu médico interessam.
(Obs: há que se
referir que no atual procesualística penal brasileira
a lesão leve DEPENDE DE REPRESENTAÇÃO
DA VÍTIMA, portanto não se trata mais
de ação pública incondicionada).
Por todas essas observações
conclui-se que não pode ser mantido o entendimento
do Resolução CFM n ° 999/80.
Deve-se dizer, inicialmente,
que a citada resolução aludia às
disposições do Código de Ética
Médica, publicado no Diário Oficial da
União de 11.1.65, posteriormente revogado pela
Resolução CFM nº 1.154/84-Código
de Deontologia Médica -, por sua vez revogado
pelo atual Código de Ética Médica
- Resolução CFM nº 1.246/88.
Discorda-se, assim, data
venia, do Parecer nº 377/98 do Setor Jurídico
deste CFM, que expressou que o conteúdo do art.
2º do citada Resolução nº 999/80
estaria em vigor, porque de acordo com a legislação.
Penso ter demonstrado que a melhor interpretação
da legislação, incluindo o próprio
Código de Ética Médica vigente,
é a que acima se expôs.
Acrescente-se que ante
a repetição de fatos da natureza daqueles
referidos na consulta, impõe-se edição
de resolução explicitando o entendimento
quanto ao segredo médico e as requisições
de prontuários e documentos médicos por
autoridades.
Dessa
forma, respondendo às indagações
do consulente:
1. Aos questionamentos
nºs 1 e 2, responde-se que o médico só
pode fornecer os documentos com autorização
do paciente. Em se tratando de crime de ação
pública incondicionada, pode por os documentos
à disposição da autoridade investigante,
para perícia, DESDE QUE NÃO HAJA POSSIBILIDADE
DE INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO CRIMINAL
CONTRA O PACIENTE;
2.
Os demais questionamentos ficam, na verdade, prejudicados
pela resposta anterior.
III
- CONCLUSÃO:
Pelo
exposto, OPINO no sentido de que o médico não
pode, sem o consentimento do paciente, revelar o conteúdo
de seu prontuário, mas em se tratando de possível
delito de ação pública, e sendo
necessário para a investigação,
pode por o prontuário a disposição
de perito médico legal indicado, para que examine
o conteúdo do prontuário apenas no que
diz respeito ao que interessa à apuração
do fato, guardado o sigilo pericial, desde que isso
não implique procedimento criminal contra o próprio
paciente.
Sugiro, acaso aprovado
o presente parecer, que seja editada resolução
sobre a matéria, revogando expressamente a Resolução
nº 999/80.
A resolução deve
ser imediatamente comunicada as Corregedorias-Gerais
da Justiça; Procuradorias da Justiça e
da República; Ministério da Justiça;
Policia Federal e Secretarias de Segurança dos
Estados, a fim de evitar constrangimentos aos médicos
que, no exercício da direção de
hospitais e clínicas, só buscam cumprir
o estabelecido no atual Código de Ética
Médico.
Este é o parecer,
SMJ.
Brasília, 10 de
agosto de 2000
Luiz
Augusta Pereira
Cons. Relator
Processo-Consulta CFM N° 1973/2000 Parecer
CFM N° 02/2000
Parecer Aprovado
Sessão Plenária de 24/08/2000
|