O
médico Guido Palomba dedica-se há 32 anos
à psiquiatria forense, ramo que avalia a sanidade
mental de pessoas envolvidas em processos judiciais.
No seu consultório, em São Paulo, mantém
mais de dez mil laudos conservados em encadernações.
Muitos deles orientaram juízes a determinar o
destino de criminosos de alta periculosidade. Recentemente,
Palomba, 57 anos, foi chamado por alguns magistrados
para conferir a qualidade de pareceres criminais assinados
nos últimos tempos. Ficou estarrecido com os
erros grosseiros que encontrou. Mas só concluiu
que a psiquiatria forense chegou ao fundo do poço
ao tomar conhecimento do parecer de Roberto Aparecido
Cardoso, o Champinha, que, em 2003, aos 16 anos, estuprou
e assassinou a estudante Liana Friedenbach, um crime
que chocou o País. Pelo documento, o jovem poderia
retornar à sociedade caso fosse acolhido por,
uma boa família, pois assim não voltaria
a cometer delitos bárbaros. Ele sustenta, no
entanto, que Champinha — que pode ser solto em
novembro — é irrecuperável. Diante
de posições tão díspares,
o Conselho Regional de Medicina abriu sindicância
para apurar o que houve. “Se um médico
esquece uma gaze no abdome do paciente, pode até
perder o registro. Alguns laudos equivalem a isso”,
afirma Palomba, que, nesta entrevista a ISTOÉ,
defende uma legislação específica
para as perícias psiquiátricas.
ISTOÉ
— O sr. está no centro de uma polêmica.
Criticou publicamente a maneira como o laudo psiquiátrico
do Champinha foi preparado. Por quê?
Guido
Palomba — Estou muito triste com o que
ocorre com a psiquiatria forense paulista, que sempre
foi o farol da atividade no País. De 1985 para
cá, por vários motivos, ela começou
a cair num declínio e agora, depois do caso Champinha,
chegou ao fundo do poço.
ISTOÉ
— Como o declínio se iniciou?
Palomba
— Com o movimento antimanicomial (pelo fim da
internação de pacientes psiquiátricos),
os núcleos de estudo de psiquiatria forense foram
desativados. Eram lugares onde se faziam laudos exemplares.
E não houve renovação de profissionais.
As instituições deixaram de ensinar como
se fazia no passado. Hoje há poucos profissionais
realmente bons. Temos atualmente o Instituto de Medicina
Social e de Criminologia, o Manicômio Judiciário
e a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté,
que não formam mais peritos. Não é
de se surpreender que peritos de seus quadros sejam
despreparados.
ISTOÉ
— Quais são os erros do laudo sobre o Champinha?
Palomba
— Cinco peritos assinam o laudo. Um deles deveria
responder pelo que fez no caso do Bandido da Luz Vermelha
(João Acácio Pereira da Costa ficou preso
por 30 anos, foi avaliado pelo médico e, dias
depois de ganhar a liberdade, em 1998, morreu assassinado).
Esse perito escreveu que a Luz Vermelha era capaz de
retornar ao convívio social, o que não
era verdade. Ele deveria responder ao Conselho Regional
de Medicina pelo que fez. No caso do Champinha, não
posso discutir os detalhes técnicos do laudo,
objeto de uma sindicância. Mas está lá
escrito que o Champinha poderia voltar à sociedade.
Que ele sofre de um leve retardo mental e que é
sugestionável, é fruto do meio em que
vive. Mas por esse raciocínio podemos entender
que, se ele fosse para um mosteiro, viraria um monge.
Outra coisa que me espantou foi a conclusão sobre
o número de facadas. Segundo o laudo, Champinha
deu uma para matar e as demais — 14 — porque
ele não tem inteligência. Queria se certificar
de que a vítima tinha morrido mesmo.
ISTOÉ
— O sr. não o examinou, mas tem uma avaliação.
Qual é?
Palomba
— É provável que Champinha seja
um encefalopata. A encefalopatia tem duas origens: uma
herança familiar, como casos de epilepsia na
família, e um ataque ao encéfalo, uma
das partes do sistema nervoso central, em tenra idade,
que pode ser um parto traumático. Os criminosos
com essa doença apresentam quatro padrões
de comportamento bem típicos: desvio de conduta,
retardo mental, linhagem epiléptica e estigmas
de degeneração física.
ISTOÉ
— Por que acredita que o Champinha é um
encefalopata?
Palomba
— Ele reúne pelo menos três dos quatro
padrões. Há distúrbio de conduta,
pois apresenta criminalidade precoce. Já tinha
homicídios e vivia assaltando. Existe retardo
mental. Champinha não faz uma conta de multiplicar
que qualquer criança faria. E também linhagem
epiléptica — ele sofreu convulsões
com 14 anos. Só não posso garantir algo
em relação aos estigmas. O ataque ao encéfalo
ocorre por um problema de desenvolvimento que, ao mesmo
tempo, resulta em deformações. Por exemplo,
os dedos em forma de baioneta. Não analisei o
Champinha para saber se ele tem deformações,
mas acredito que apresente algum estigma.
ISTOÉ
- Há mais características que sustentam
essa afirmação?
Palomba
— Os encefalopatas costumam apresentar degeneração
do instinto sexual, com taras como bestialismo e delitos
de estupro com afronta do cadáver. Foi o que
aconteceu nesse crime. Ferocidade na execução
do ato, sevícias, mordidas e arrancadas de pedaços
do corpo são, de certa forma, comuns, pois o
que lhes interessa é satisfazer o instinto sexual,
sem se preocupar com as vítimas. O crime do encefalopata
é tosco, pouco elaborado. Essas pessoas são
incorrigíveis e se tornam o que a mídia
chama de monstros. Os especialistas, quando encontram
um episódio clássico de uma doença,
dizem que é um caso de livro. Pois Champinha
é isso: um encefalopata de livro.
ISTOÉ
— Seus colegas concordam?
Palomba
- Os que conhecem psiquiatria forense têm opinião
semelhante.
ISTOÉ
— Se é assim, por que os peritos que assinaram
o laudo de Champinha não chegaram a essa conclusão?
Palomba
— Porque são despreparados. Não
podem ser reconhecidos como psiquiatras forenses. Não
possuem essa titularidade. Eles usaram testes psicológicos
inadequados. Testes que servem para escolher uma profissão,
por exemplo. Esqueceram que um exame clínico
é soberano a qualquer teste.
ISTOÉ
— Como é feito esse exame?
Palomba
— Estuda-se a condição de gestação
e parto do individuo, o desenvolvimento neuromotor,
a escolaridade, possíveis vínculos com
o crime, o uso de drogas. E se buscam informações,
como se ele age sozinho, se tem hobbies e como é
seu relacionamento familiar. O segundo item é
verificar antecedentes hereditários, por exemplo,
casos de alcoolismo e suicídio na família.
É preciso ainda um exame físico para verificar
se tem fatores que influenciem no psiquismo, como convulsões
ou ocorrências de traumas físicos. E há
o exame psíquico com avaliação
da memória, da sensação e da percepção.
ISTOÉ
— O que se obtém com isso?
Palomba
— Temos de saber como é o humor do criminoso,
que grau de afetividade apresenta, se tem inteligência
e juízo crítico. É importante avaliar
se ele tem capacidade de se orientar diante dos fatos
e se tem planos para o futuro. É um processo
complexo que, dependendo da gravidade, requer às
vezes até entrevista com a professora da escola,
o padeiro, para saber como o indivíduo era na
ocasião do crime. Se com todo o conhecimento
do universo biológico, psicológico, social
e cultural da pessoa é difícil descobrir
o que ela tem, não será uma análise
de manchas de tinta que me dirá. E foi um teste
desse tipo, o de Rorschach, que apresenta dez borrões
de tinta para que a pessoa diga o que eles representam,
que se aplicou no Champinha.
ISTOÉ
— Como esses peritos foram escolhidos?
Palomba
— Eles foram designados porque trabalham nas instituições
que citei. Entraram nesses lugares como funcionários
públicos. Aliás, o último concurso
público específico para psiquiatras forenses
aconteceu há quatro anos e eu participei da banca.
De dez candidatos, nove foram reprovados com zero.
ISTOÉ
— Mas existe a especialidade?
Palomba
— Existe. O título é emitido pelas
Associação Médica Brasileira, Associação
Brasileira de Psiquiatria e Sociedade Brasileira de
Medicina Legal. Formamos um grupo multidisciplinar na
Associação Paulista de Medicina com propostas
para reativar a psiquiatria forense. Uma das idéias
é revalidar o diploma de titularidade de cinco
em cinco anos. Não é de agora que laudos
estão sendo feitos por gente despreparada. O
Judiciário não estava mais aceitando certas
irregularidades porque elas eram visíveis até
por quem não era especialista.
ISTOÉ
— Quais são elas?
Palomba
— Há três meses fui chamado por juizes
da Vara das Execuções Criminais para analisar
os laudos de verificação de cessação
de periculosidade. Muitos estavam totalmente sem padrão.
O importante é fazer algo porque a situação
está difícil e não pode ficar assim.
Os peritos despreparados não têm a punição
que merecem. Se
um médico esquece uma gaze no abdome do paciente,
ele pode até perder o registro. Alguns laudos
equivalem a isso, a esquecer a gaze. E nada acontece
com quem faz essas avaliações. Eles têm
de ser responsabilizados.
ISTOÉ
— Os juízes que determinam a soltura desses
indivíduos também não deveriam
responder por isso caso eles voltem a cometer crimes?
Palomba
— Os juízes não são especialistas
em psiquiatria forense e, por isso, se valem de auxiliares.
Se ele recebe um documento oficial, presume-se que tenha
sido feito por algum profissional especializado. Mesmo
que apresentasse algo errado, dificilmente o juiz poderia
ir contra aquele laudo. Como ele perceberia se aparentemente
o material é bem-feito?
ISTOÉ
— Nos outros Estados a situação
é parecida?
Palomba
— Em todos os Estados há profissionais
capacitados. Mas também sei que eles falam de
laudos dignos de má nota. Isso amplia o risco
da sociedade porque os casos de reincidência por
laudos malfeitos estão aí, nas ruas.
ISTOÉ
— Voltando ao caso Champinha, se ele for mesmo
um encefalopata como o sr. acredita, o que acontece
com um sujeito desse?
Palomba
— Não há como pensar em um encefalopata
retornando ao convívio da sociedade. Daqui a
alguns anos, ele pode evoluir para pior. Os quadros
mais graves na encefalopatia costumam ocorrer depois
dos 20 anos. E temos de levar em conta mais outro aspecto,
que foi dito pelos peritos que o avaliaram. Já
que ele é influenciável, o meio social
no qual se insere seria muito desfavorável. Aí,
haveria duas possibilidades: ou Champinha retorna para
a cadeia com mais crimes cometidos ou ele vai morrer
assassinado. Falo isso como especialista que tem consciência
de que na medicina existem casos incuráveis
ISTOÉ
— Se for dado esse diagnóstico
ao Champinha, então, ele permanecerá recluso?
Palomba
— Não. O Estatuto da Criança e do
Adolescente determina que ele seja solto. Mesmo sendo
encefalopata. Mas acho que a legislação
deveria ser modificada também para contemplar
esses casos.
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