Sigilo
Médico
A
busca da verdade no processo penal - Limitações
ao descobrimento da verdade.
Do
legendário juramento de Hipócrates é
que se colhe a substância do sigilo médico:
“O que no exercício ou fora do exercício
e no comércio da vida eu vir ou ouvir, que não
seja necessário revelar, conservarei como segredo”.
De acordo com o Código de Ética Médica;
Resolução 1.246, de 08 de janeiro de 1988,
do Conselho Federal de Medicina; um dos princípios
fundamentais que regem a profissão consiste no
dever imposto ao médico de manter sigilo quanto
às informações confidenciais que
tiver conhecimento no desempenho de suas funções,
cuja revelação somente pode ser feita
por justa causa, dever legal ou autorização
do paciente – O código de Ética
Médica cuida do segredo médico em seus
arts. 102 a 109. Interessa acrescentar o dispositivo
que proíbe a revelação do fato
que se tenha conhecimento em virtude da profissão,
nas seguintes hipóteses: a) mesmo que o fato
seja de conhecimento público ou que o paciente
tenha falecido; b) quando do depoimento como testemunha.
Nesta hipótese o médico comparecerá
perante a autoridade e declarará seu impedimento
(parágrafo único do art. 102).
Como
se vê, a vedação à revelação
do segredo comporta algumas exceções,
mas segue, em linhas gerais, a recomendação
contida no Código Internacional de Ética
Médica, adotado pela 3.ª Assembléia
Geral da Associação Médica Mundial,
realizada em Londres, Inglaterra, em outubro de 1949,
segundo a qual o médico deverá manter
segredo absoluto sobre tudo que sabe de um paciente,
dada a confiança que nele depositou.
As
confidências acobertadas pelo sigilo não
se restringem necessariamente ao diagnóstico
da moléstia ou da lesão física
sofrida. Na realidade, em alguns casos, o que o paciente
visa manter escondido do domínio público
são as circunstâncias que ensejaram o surgimento
da moléstia ou da lesão. Assim, tudo que
o médico observa, contempla e descobre no contato
que realiza com o paciente, incluindo o que este lhe
diz sem nenhuma ligação com o exame médico,
não pode ser revelado. Acresce ponderar que o
sigilo em questão não se restringe só
a figura do médico, visto ser o termo utilizado
na concepção genérica. Dessa forma,
pode-se dizer que os direitos e restrições
concernentes ao sigilo se destinam também aos
psicólogos, psicanalistas, dentistas, enfermeiros,
parteiras, funcionários e dirigentes de hospitais
etc.
Também
é preciso ficar registrado, não obstante
o quanto isso possa parecer óbvio, que o dever
de manter o segredo profissional não se aplica
aos profissionais dessas áreas quando realizam
o exame na condição de peritos, eis que
em tais circunstâncias agem no intuito de descobrir
a verdade, auxiliando a Justiça ou a Polícia.
Aliás, oficiando o médico como perito
sequer poderá calar-se, visto ser obrigado a
revelar toda a verdade em processo judicial ou administrativo,
bem como no inquérito policial, caso contrário
corre o risco de responder processo criminal pela prática
do crime de falsa perícia (art. 342, §§
1.º e 2.º, do CP).
Até
mesmo quando não investido dessa função
pública é possível encontrar, na
esfera privada, situações que isentam
o profissional de manter o sigilo, como sucede, por
exemplo, com os médicos contratados para proceder
exames que precedem a contratação de empregado,
a obtenção de aposentadoria, ou a autorização
ou renovação da licença para dirigir
veículos. Nessas hipóteses, o fornecimento
de informações médicas ao superior
ou empregador é natural.
No
âmbito da entidade de classe, o desrespeito às
normas ditadas pelo Código de Ética pode
resultar na imposição das seguintes penas
disciplinares ao médico: advertência confidencial
em aviso reservado; censura confidencial em aviso reservado;
censura pública em publicação oficial;
suspensão do exercício profissional até
30 dias e cassação do exercício
profissional ad referendum do Conselho Federal
– essa gradação de penas disciplinares
pode ser imposta pelos Conselhos Regionais de Medicina,
em conformidade com o art. 22 da Lei 3.268, de 30.09.1957.
Todavia, a mantença do sigilo médico deixa
de ser um dever absoluto na medida em que se permite
a revelação das confidências por
justa causa, cumprimento do dever legal ou mediante
autorização expressa do paciente.
A justa
causa tem seus limites fixados pelo direito, sendo a
legítima defesa – própria ou do
paciente – o melhor exemplo dessa excludente.
Mas, é preciso atenção para o fato
de que se a justa causa descaracteriza a figura penal
própria de quem viola o segredo profissional,
de forma alguma serve de fundamento para obrigar o médico
a revelar o segredo que lhe foi confiado em razão
do exercício da profissão (Antônio
Carlos Mendes, Segredo médico, Ética
Médica, ano 1, n.º 1, p. 144-150, Conselho
Regional de Medicina de São Paulo, 1988).
Igualmente
não se pune o médico quando a quebra do
sigilo tenha sido motivada por ordem legal. Aliás,
a lei penal tipifica como crime de omissão de
notificação de doença a conduta
do médico que deixa de denunciar à autoridade
pública moléstia cuja notificação
é compulsória (art. 269 do CP). Outro
exemplo de obrigatoriedade da revelação
do segredo encontra-se na lei que trata do planejamento
familiar, que estabelece sanções para
o médico que deixa de notificar a autoridade
sanitária as esterilizações cirúrgicas
que realizar (art. 16 Lei 9. 263/96).
Havendo
autorização expressa do paciente, o médico
pode romper o sigilo. Todavia, a autorização,
por si só, não o obriga a agir dessa forma.
A decisão sobre a revelação, ou
não, se transfere para a consciência do
profissional, a quem caberá sobre ela posicionar-se.
É certo que nos crimes de ação
penal pública incondicionada de que teve conhecimento
no exercício da profissão, está
o médico obrigado a fazer a comunicação
competente à autoridade policial, ao Ministério
Público ou ao Juiz de Direito, mas desde que
não exponha o cliente a procedimento criminal
(Cf. art. 66 da Lei das Contravenções
Penais, Dec.-lei 3.688, de 03.10.1941).
No
relacionamento que se forma entre o médico e
as autoridades incumbidas da persecução
penal, surge uma questão que tem causado discussão.
Em princípio, o sigilo médico tem sido
respeitado sem maiores problemas pelo Judiciário
quando o profissional presta depoimento na condição
de testemunha. Já não se pode afirmar
o mesmo com referência às anotações,
boletins médicos, papeletas, folhas de observação
clínica etc., documentos sobre os quais também
repousa o manto do segredo. O ponto de discórdia
deriva da recusa por parte de médicos e diretores
de hospitais em atender requisições judiciais,
negando-se a apresentar fichas clínicas de pacientes
e prontuários médicos.
Esse
debate toca de perto a busca da verdade no processo
penal. Há quem sustente que existe justa causa
para o Poder Judiciário requisitar informações
e cópias de fichas clínicas, sendo a prestação
por parte de médicos e hospitais perfeitamente
legal, não configurando qualquer tipo de infração,
pois a revelação não é leviana
e sim técnica, clara e objetiva, para responder
aos interesses da sociedade, de sorte que o não
atendimento da requisição importa no crime
de desobediência (Jeferson Moreira de Carvalho.
Sigilo médico, RT 722/594). Data venia,
esse não é o entendimento mais adequado
para solucionar o embate, visto tratar-se de atividade
totalmente regrada que, em princípio, não
comporta a avaliação discricionária
da autoridade administrativa ou judiciária daquilo
que possa constituir justa causa para excepcionar o
instituto jurídico da guarda do segredo profissional.
Este tutela a liberdade individual e a relação
de confiança que deve existir entre o profissional
e cliente, para a proteção de um bem jurídico
respeitável. No embate com o direito de punir,
o Estado prefere aqueles outros valores. Por isso, entendo
que a intimação judicial feita a médico
ou a dirigente de hospital para apresentar as fichas
clínicas e documentos sob pena de ser responsabilizado
por crime de desobediência, caracteriza constrangimento
ilegal, visto que além de constituir ofensa ao
sigilo profissional carece de justa causa.
É
claro que a busca da verdade sofre as restrições
decorrentes da adoção do princípio
que privilegia a preservação do sigilo
médico. Mas, para compensar a escolha que garante
a liberdade individual e a personalidade moral do indivíduo,
pode o Judiciário, em casos excepcionais, ter
acesso a tais documentos mediante a realização
de diligência de médico-perito nomeado
para esse fim, a quem não se impõe, como
vimos, o dever de manter o segredo profissional. Essa
forma de quebrar-se o sigilo médico pela via
judicial também pode ser recomendada pela adoção
do princípio da ponderação de interesses. |