ACEPÇÃO
DE SEMIOLOGIA NO DOMÍNIO
DAS
DOENÇAS MENTAIS ( * )
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PELO
Prof.
Dr. Aníbal Silveira («1902
V1979
)
Chefe
de Clínica Psiquiátrica do Hospital de Juqueri,
S. Paulo.
Docente-livre
de Psiquiatria, Universidade de São Paulo
Leia
mais sobre Aníbal Silveira
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(*)
Aula proferida em 4-3-1950 no Hospital do
Juqueri, São Paulo, como preleção introdutória
do Curso de Semiologia Psiquiátrica.
(**)
O curso foi taquigrafado e coligido por gentileza
dos Drs Silvio Alves Barbosa e Ibrahim Mathias,
respectivamente. A ambos apresentamos de público
nossos agradecimentos. |
Inicialmente
desejamos frisar que a finalidade precípua deste curso
será a de concorrer para a orientação teórica dos médicos
estagiários que se encontram praticando no Hospital
Central de Juqueri ( ** ). Por isso os psiquiatras experientes
que nos honram com a presença nos desculparão por desenvolvermos
o tema pelo aspecto mais simples, pois o curso terá
caráter elementar. Lembramos também que os colegas têm
plena liberdade para formular perguntas ou fazer as
objeções que acharem cabíveis, para o que ficarão reservados
quinze minutos no final de nossa exposição; de nossa
parte reservar-nos-emos a liberdade de, no caso de não
sabermos esclarecer imediatamente a questão proposta,
estudar o assunto para posterior elucidação.
É possível que em alguns casos o que
dissermos corresponda a simples opinião pessoal, que
os ouvintes desejem discutir.
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Na
aula de hoje procuraremos estabelecer a acepção do termo
“Semiologia” tal como o deve encarar o psiquiatra. Ele
assume aqui sentido particular, não pelo lado técnico
da semiologia, mas por se aplicar às doenças mentais.
Naturalmente, como semiologia, visa o estudo sistemático
de sinais que conduzem ao diagnóstico. Mas a acepção
de sinal é um pouco diversa daquela em uso na clínica
geral e mesmo na neurologia. E isto exatamente porque
o problema que temos a enfrentar, isto é, o diagnóstico
a que procuramos chegar, se refere a distúrbios – quer
funcionais, quer de origem orgânica - de funções muito
complexas, as quais dependem essencialmente, tanto no
estado normal como no patológico, dos demais níveis
de integração da personalidade e que são subsidiários
dessas funções.
A
estrutura humana é de tal ordem que as manifestações
psíquicas dependem não somente das correlações das funções
cerebrais entre si como também do substrato anatômico
do encéfalo - do cérebro particularmente. Por sua vez,
estas disposições anatômicas decorrem, indiretamente,
das condições gerais do organismo e de maneira direta
do nível de desenvolvimento do aparelho encefálico.
Além disso, cumpre levar em conta as influências oriundas
do meio social, e, no caso da patologia, a interferência
de fatores do ambiente físico. Portanto, temos que recorrer
a todos esses conhecimentos para avaliar corretamente
de que maneira determinada função psíquica está situada
em relação à faixa normal correspondente.
Desejamos
frisar como característica do exame psiquiátrico a necessidade
de apoiar-se em dados objetivos precisos e ao mesmo
tempo de levar em conta fenômenos de ordem funcional
e principalmente de dinâmica social. Dizemos dinâmica
social não em sentido evolutivo, de fases sociológicas,
mas em relação a grupos coexistentes no mesmo ambiente
geográfico: assim, para exemplificar, a alusão de pacientes
de “espíritos encostados” ou a malefícios de “coisa
feita” não constitui, de per si, delírio, se o ambiente
peculiar ao examinando a poderia endossar.
Depreende-se dessa rápida revisão que
a semiologia psiquiátrica não se pode limitar aos sinais
objetivos manifestados pelo paciente no momento do exame:
ela envolve questões extremamente
complexas que transcendem o limite da pessoa física
em estudo e se prendem, por um lado a fenômenos sociogênicos,
por outro a condições atinentes à herança biológica.
Parece
estranho que o psiquiatra deva atender com o mesmo cuidado
a fenômenos de esfera tão ampla como os da sociologia,
e a outros tão particularizados como os caracteres heredológicos.
E
na realidade a maioria dos autores tende a encarar a
psiquiatria de maneira unilateral. Justamente por isso
insistimos em que é indispensável ter sempre em vista
que o nível moral, ou subjetivo, da personalidade pressupõe
necessariamente o concurso de numerosos fatores, dinâmicos,
estruturais, biológicos, físicos e também sociais. Em
conseqüência, é forçoso estudar muito maior número de
fatos do que os demais setores da medicina para concluir
pelo diagnóstico adequado. E, ainda com mais razão que
nos outros campos da atividade médica a tarefa que nos
impõe na psiquiatria ao darmos um nome a cada caso não
decorre de fato, da simples necessidade de rotular.
O diagnóstico nosográfico não constitui sequer a finalidade
imediata do exame psiquiátrico. Convém não esquecer
que as modalidades clínicas a que chegamos como conclusão
desse estudo semiológico, isto é, as doenças mentais,
representam entidades abstratas por excelência. Certamente
existe um conjunto de dados que rotulamos; por exemplo,
como esquizofrenia ou como psicose maníaco-depressiva.
Mas isto constitui simples criação do espírito humano,
artifício lógico para metodizar o trabalho: nosso dever
é considerar objetivamente em que condições somáticas
e psíquicas se encontra o indivíduo cujas manifestações
psicóticas descrevemos como o diagnóstico psiquiátrico,
no caso a esquizofrenia ou a psicose maníaco-depressiva.
São aquelas condições específicas, não esta entidade
genérica, o que há de orientar o psiquiatra para o trabalho
corretivo.
Ademais dessa atuação essencialmente médica,
desenvolvida em sentido imediato, cumpre ao psiquiatra
intervir em âmbito mais largo e com finalidade muito
mais elevada. Realmente, é na readaptação social do
paciente que consiste a principal função do psiquiatra:
ele há de encarar os distúrbios que tem diante de si
como alterações, patológicas
em grau variável, que levam o indivíduo a desajustar-se
da atividade social na qual devera estar integrado.
Somente a psiquiatria
– e a semiologia é que provê os meios para isto – permite
ao profissional médico identificar até que ponto o indivíduo
se desgarrou da própria finalidade social dinâmica,
e de que maneira será possível corrigir tal desintegração.
E, como complemento indispensável
e de alcance ainda mais amplo, ocorre ao cultor da nossa
especialidade evitar que essa alteração se mantenha
ou se propague através de traços heredológicos.
Assim,
essa dupla finalidade social e eugênica é que deve orientar
o estudo da semiótica no setor da psiquiatria. Isso
equivale a afirmar que não basta apurar os conhecimentos
tendo em mira a finalidade imediata de atuação sobre
os sintomas clínicos. Não é psiquiatra quem descubra
a solução mediata, a longo prazo. Não é lícito pensar
que em psiquiatria a tarefa do médico cesse com a obtenção
do resultado imediatista, ao contrário, cumpre-nos prever
e planejar para muitas gerações consecutivas.
Encarada
a semiologia por esse ângulo, é fácil verificar que
ela vem sofrendo a mesma evolução que o conceito de
psiquiatria.
Passando rapidamente em revista essa evolução,
lembraremos a grandiosa construção devida a KRAEPELIN,
infelizmente ainda mal apreciada. Coube a ele estabelecer,
primariamente, o conceito de doença mental endógena,
trazendo assim ao conhecimento do psiquiatra esse novo
elemento semiológico que ultrapassava a identidade física
do indivíduo. Foi certamente um progresso poder demonstrar
que algumas doenças mentais sobrevêm sem que necessariamente
intervenham causas exógenas, mas sim como resultado
de componentes endógenos. É comum hoje em dia profligarem
o empenho daquele grande inovador em classificar os
quadros psicóticos, como se fora essa a meta fundamental
por ele visada. Entretanto a doutrina Kraepeliniana
representou o primeiro passo na evolução da psiquiatria,
em primeiro lugar porque deu a esta uma base sólida:
diante de certos números de dados, é hoje possível concluir
se determinado caso clínico corresponde principalmente
a tendências herdadas do indivíduo ou se ao contrário
obedece à atuação de fatores ocasionais. É o que resumimos
com a figura 1, em que reunimos dois esquemas de LUXENBURGER.
Começou
assim a ser transformada em previsão a intuição clínica
que, em última análise, não passava de simples predição.
Além
disso, constitui o ponto de partida para a atual prevenção
eugênica. De fato, será impossível promover a profilaxia
de doenças mentais sem estabelecer o critério distintivo
entre os quadros meramente acidentais e os que derivam
do mecanismo heredobiológico.
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Fig
1 - Esquemas da interdependência entre fatores
ambienciais e genotípicos da personalidade,
segundo LUXENBURGER, em estado hígido e em
quadros mórbidos - (V. nº 9 da bibliografia,
pág 133). |
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