Delírio
no Sentido estrito - Patogênese diferencial
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PELO
Prof.
Dr. Aníbal Silveira («1902
V1979
)
Chefe
de Clínica Psiquiátrica do Hospital de Juqueri,
S. Paulo.
Docente-livre
de Psiquiatria, Universidade de São Paulo
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A
nossa concepção de delírio é diferente dos outros autores
de uma maneira geral, é definido o delírio como sendo
concepção não baseada na realidade correspondente, não
aceitável para pessoas no mesmo grupo e também na mesma
situação social porque temos interpretações que não
são aceitas pela maioria, mas que podem ser aceitas
por uma minoria. Então, para um mesmo grupo em igualdade
de condições há concepções que não são aceitáveis e
que distanciam, portanto, da realidade.
Por
isso é que chamamos de concepção delirante, sendo o
delírio aqui, como uma concepção, uma vez que o outro
tipo de delírio, ao qual nos referimos, corresponde
mais a um estado confusional em que predomina o mundo
subjetivo, devido a fatores tóxicos ou infecciosos ou
fatores outros, endógenos, que fazem sobrepor a maneira
do indivíduo sentir a realidade exterior ligado freqüentemente
com confusão e alucinação. Esse é o quadro de delírio
infeccioso, delírio sintomático, delírio agudo; ao passo
que a concepção delirante já é um processo intrinsecamente
da elaboração.
Nós
mencionamos vários níveis de trabalho no plano intelectual,
mostrando que há um gradiente de complicação que vai
desde a percepção dando a noção de realidade até a elaboração
e simbolização.
Num
quadro projetado, podemos fazer uma seriação dos processos
tendo então a observação nos dois níveis — concreto
e abstrato — como elemento básico no domínio da elaboração
da realidade e portanto do material fornecido pelos
sentidos.
A
meditação também possui dois níveis: indutivo e dedutivo,
dando aqui uma reconstituição da realidade exterior.
No caso abstrato temos uma dissociação, não de associação
e sim de disjunção, dando como resultado um novo trabalho,
a que corresponde então o pensamento. Alguns autores,
em geral psicólogos, falam de pensamento ativo, especialmente
os alemães, também a este trabalho de observação abstrata
e concreta. É ativo, mas nós temos aqui, idéia, apenas
idéia. Então, a idéia ou noção corresponde ao primeiro
contato, à primeira elaboração da realidade exterior,
percebida através dos sentidos. O pensamento é uma seriação,
uma associação, portanto, articulando idéias, sobre
aqueles quatro processos que analisamos anteriormente,
de continuidade no tempo, de contigüidade no espaço,
de semelhança exterior e de relação intrínseca entre
os fenômenos, que dá como resultado a simbolização.
Ora, nós vemos que da idéia simples se passa para uma
série de idéias de pensamento, por conseguinte concatenados
através deste mecanismo de indução e dedução. Nós temos,
já na observação concreta, uma série de fenômenos, que
são estimulados pela realidade exterior, mas que não
são derivados diretamente da realidade exterior. Nós
derivamos através da nossa experiência, de tal forma
que, a cada idéia
nova que se tem, resulta numa unidade que engloba a
experiência anterior à experiência no momento em que
se processa a percepção. Mas, é sempre uma elaboração
primária que temos, uma reconstituição da realidade
exterior. Na indução e na dedução, já temos o trabalho de construção, então se organiza uma nova
série, uma nova ordem de conhecimentos, através daquelas
imagens que foram recebidas anteriormente. Mas, há ainda
outro trabalho mais complexo, através da indução e da
dedução especialmente, que é a simbolização.
A
simbolização, por conseguinte, é emprestar um sentido
peculiar e característico a essa série de elementos
que nos vem através dos sentidos e da elaboração. É,
portanto,
uma construção mais diferenciada, construção que depende
dos outros níveis fundamentais de construção. Essa construção,
portanto, construção de juízo, de raciocínio, de uma
lógica, depende do órgão de expressão. É função do órgão
da expressão, constituindo, portanto, a expressão e
terceiro nível da elaboração da realidade. De maneira
que na acepção de Comte e também na de Pavlov, a expressão
se limita à comunicação e é também um processo de elaboração
da realidade, de simbolização, tornando-se cada vez
mais abstrato. Dissemos que a elaboração, quer seja
abstrata ou concreta, corresponde à imagem primária,
na acepção de Laffitte, a meditação dedutiva e indutiva
corresponde também à imagem chamada imagem subjetiva,
porque não deriva diretamente da imagem anterior; a
expressão corresponde à formação do sinal, isto é, relacionar
este trabalho de simplificação e de contração da imagem
aos estímulos que vêem do mundo externo.
A essa relação constante, Comte chamou de expressão,
e segundo o referido autor, não se pode chegar às leis
abstratas sem esse elemento de expressão. Assim, exemplificando,
nos ensina Comte, os animais superiores têm certo grau
de observação concreta e abstrata, inclusive meditação
dedutiva, mas não chega a uma simbolização complexa
como nós chegamos, por efeito social do homem. Então,
os animais não poderão chegar às leis, isto é, prever
o que acontece, embora possam ter, seguramente, um conhecimento
imediato. Ex.: o animal ameaçado por se pegar uma pedra,
corre ou avança, conforme seu temperamento de reação;
ele não prevê, relacionando a nossa atitude ou gesto
com uma experiência dele. Mas, é uma previsão direta
e imediata, isto é, que se deduz diretamente do estímulo,
não correspondendo ao tipo de simbolização complexa
como temos no trabalho mental humano de construção.
Temos, por conseguinte, que quando vamos estudar o distúrbio
da elaboração, que corresponde ao delírio, neste sentido
de concepção delirante, no sentido estrito e correto
— uma perturbação nesse processo de pensamento e principalmente,
no processo de construção, sendo que na simbolização,
portanto, é que está o elemento fundamental e característico
do delírio. Quando se trata de observação concreta e
abstrata, temos o fenômeno chamado de ilusão ou de alucinação,
conforme o caso. Com relação à meditação dedutiva ou
indutiva, podemos ter alteração do pensamento, que não
corresponde ao delírio. Exemplificando, podemos ter
alterações alógicas, paralógicas, que veremos na semiologia
e outros déficits, a fixação de uma idéia, o pensamento
obsessivo, enfim, uma série de alterações que obedecem
a um mecanismo extrínseco, que atinge a capacidade do
pensamento de uma ou outra maneira, mas que não constituem
o delírio, embora seja uma perturbação extrínseca ou
intrínseca do pensamento.
O
delírio consiste, então, em uma construção que não é
subordinada à realidade correspondente, e temos que
fazer esta discriminação da realidade correspondente,
porque em relação aos outros aspectos da realidade,
este trabalho pode estar conservado. Então, o indivíduo
que apresenta uma idéia persecutória, por exemplo reconhece
todos os fatos, pode dar narração exata, com crítica,
mas naquele problema relacionado com seu delírio, ele
não consegue desvencilhar desse trabalho mental patológico.
Revela esse trabalho mental patológico, porque a realidade
correspondente está deturpada, no caso do delírio e
vemos, que justamente essa construção anormal pode ser
porque ele recebe estímulo falseado ou então porque
ele não consegue elaborar de um modo adequado essa realidade.
Então, ou ele elabora adequadamente um fenômeno que
foi falseado por causa da alucinação ou ilusão, ou ele
não consegue elaborar corretamente porque o processo
é intrinsecamente alterado, no domínio da dedução ou
da indução. Mas,
pode ser uma reação patológica puramente afetiva, então
neste caso temos o que Grunhle (1915) chamou de delírio
primário, que para ele seria o protótipo do delírio,
aquele que não depende de alucinações. Os outros seriam
delírios secundários, conseqüentes à alucinação.
O delírio primário é um processo intrinsecamente ligado
com a simbolização; aliás, Grunhle chamou a atenção
para o processo da simbolização e portanto não é alucinação,
não é um elemento que decorra da incapacidade de raciocínio,
mas é principalmente deturpado o processo de simbolização.
Mas, vemos que só isso não explica, porque essa deturpação
delirante pode obedecer a dois dinamismos diversos:
pode ser de origem intelectual, então o caso de Grunhle
dizer que é, intrinsecamente, a simbolização que está
alterada; e pode ser de origem afetiva. Nos dois
casos temos uma perturbação central da elaboração: num
caso, extrínseca, por que é afetiva no outro, intrínseca,
porque é intelectual, ou seja,
é o processo de simbolização que está atingido
primariamente neste domínio. Na acepção delirante, se
quisermos encarar por este aspecto, temos que considerar,
no estudo dos delírios ou da concepção delirante, o
aspecto patogênico, a estrutura do delírio e o conteúdo,
quer dizer, a apreciação do elemento que corresponde
ao sentido do delírio. O que interessa então, idealmente
é a PATOGÊNESE,
a estrutura e o conteúdo. Quanto à patogênese pode ser
intelectual ou afetiva e isso corresponde a um elemento
mais geral, que seria, digamos assim, o da esfera da
personalidade atingida, ou seja quanto à patogênese
a esfera da personalidade que participa fundamentalmente
do delírio, deve ser levada em consideração. Portanto,
devemos considerar em relação à patogênese, a esfera
afetiva ou intelectual como dando o sentido em que se
processa o delírio; a patogênese intelectual ou afetiva
— que é uma coisa um pouco diversa que corresponde então
ao dinamismo pelo qual se processa o delírio. Esfera,
porque o delírio pode ser do tipo expansivo, de grandeza,
um delírio exteriorizado facilmente — como depressão com reação de desinteresse, de apatia, a uma
série de mecanismos que são ligados com a esfera afetiva,
intelectual ou conativa, de preferência a esfera afetiva
e intelectual é que participam mais diretamente no delírio.
Quanto à patogênese afetiva e intelectual é que temos
que levar em conta um aspecto diferencial, porque vai
nos servir da semiologia, também. Então uma primeira
conseqüência de ser esfera afetiva ou intelectual é
que no segundo caso o indivíduo oculta o delírio ou
procura ocultá-lo, dando respostas evasivas para não
revelar o conteúdo de seu delírio, porque sendo intelectual
ele tem consciência de que esse processo é mórbido.
Quando a esfera atingida é a afetiva, então ele revela
diretamente porque está tão integrado no seu processo
delirante que não distingue essa situação da situação
real, passando a revelar mais facilmente. Esse fenômeno
também se verifica num processo normal, assim o indivíduo
que tem uma reação momentânea, de ser aprovado em alguma
coisa, de ser espezinhado em alguns aspectos reage às
vezes interpretando as intenções de forma completamente
desviada da realidade e não se percebe isso, pelo contrário,
ele interpreta, por falta na capacidade de apreensão,
não revela este aspecto, analisa esses problemas e não
dá a conhecer o que sente no momento.
Isto,
na patologia, é mais acentuado ainda. Na gênese intelectual,
além deste aspecto patogênico há também o dinamismo
pelo qual se processa o delírio. Dissemos que Grunhle
interpreta como sendo um processo em que está atingindo
diretamente a simbolização da realidade. Mas este então
seria um aspecto dinâmico no sentido da dinâmica mental.
Outra interpretação também intelectual se refere ao
conteúdo psicológico ou gênese psicológica que no final
das contas vem a ser o conteúdo. Aqueles cérebros que
Freud publicou em 1895 e depois em 1912, de pacientes
analisados por ele nos quais havia processo psicótico
bem caracterizado, depois do surto apresentaram uma
série de dinamismos que ele chamou de "projeção
delirante", no caso. Um deles é o de uma senhora
que havia sido paciente de Flecci e teve dois surtos
com intervalo de alguns anos entre os referidos surtos.
Freud interpretou isso como defesa do processo de auto-recriminação,
um desenvolvimento delirante no qual ele projetava no
outro indivíduo aquilo que era auto-recriminação. Freud
procurou mostrar que isto é de uma defesa contra a recriminação,
isto é, a pessoa não aceitava a própria auto-recriminação
e mediante o delírio projetava nos demais. Nos dois
casos era uma psicose (um deles ele tomou conta como
sendo esquizofrenia e o outro caso como sendo paranóia)
seguramente de referência num caso e o delirante nos
dois aspectos, mas psicoses benignas de Kleist. Uma
delas foi dada como demência precoce, ficou boa, com
nova recidiva posteriormente, embora, como dizia Freud,
ela tinha concepções delirantes
que ela definiu como sendo característica do
delírio mediante o dinamismo de projeção. Então é uma
gênese intelectual que refere o aspecto de conteúdo
psicológico que não está em jogo e não mais o dinâmico.
Seria
então fundamentalmente um processo de ordem afetiva
de
ligação com os adultos, com a mãe e com o pai, no caso
da citada com auto-recriminação, depois com a compensação
de modo que não sentia mais isso, mas projetava nos
demais a desconfiança. Esse mesmo aspecto os existencialistas
como diz Binseanger, por exemplo, interpretam
como sendo distúrbios da maneira de se sentir
no mundo exterior, de estar no mundo, de ter perdido
a visão panorâmica, então a desconfiança é o fato do
indivíduo não sentir segurança e sentir-se ameaçado
porque as relações entre ele e o mundo são deficientes,
estão perturbadas nesse aspecto. Vemos que isso não
explica nada, não explica o dinamismo, assim como também
o fator psicológico ou explica sim o conteúdo mas não
o dinamismo patogênico. Veremos que é importante analisarmos
a estrutura do delírio nas suas várias formas. De modo
que em termos gerais, nós devemos compreender através
da dinâmica psicológica normal ou psicológica, como
se estabelece o delírio. É um distúrbio em vários níveis
do trabalho mental de tal maneira que o indivíduo ou
reage patologicamente, interpretando fatos normais,
associando de maneira apenas deturpada — porque interfere
o fator de simbolização ou baseando em alteração da
percepção, portanto alucinações ou ilusões, mas principalmente
alucinações, embora seja uma elaboração da realidade
sem filiação à realidade correspondente.
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