A
PSICOPATOLOGIA COMO CIÊNCIA AUTÔNOMA
(resumo
de trabalhos escritos pelo autor)
Isaías
Paim
A
psicopatologia percorreu um caminho extremamente
difícil até se tornar uma ciência
autônoma. Não é fácil
descobrir a origem do termo. É possível
que o seu criador tenha sido Jeremy Bentham, jurisconsulto
e filósofo inglês (Londres, 1748-1832),
que, ao preparar uma lista das motivações
humanas, reconheceu a necessidade da organização
de uma psychological pathology (1817).
Com o correr do tempo os autores empregaram várias
expressões para designar esse novo campo
de estudos. Aludiram a psicopatologia,
psicopatologia geral, psicologia
anormal, psicologia da anormalidade
e psicologia do patológico. A
última expressão é a mais
adequada para qualificar o objeto de estudo da
nova ciência, mas o termo mais empregado
e amplamente aceito é psicopatologia.
O termo psicopatologia é de origem grega
– psiché, alma e patologia. Traduzido
em sentido literal significa patologia do espírito.
Mas este não é o sentido que a expressão
adquiriu ao longo de mais de um século
de seu desenvolvimento.
O Webter’s New International Dictionary
define o termo como “o estudo científico
das alterações mentais do ponto
de vista psicológico”. H. B. English
define-o como “a investigação
sistemática de estados mentais mórbidos”
e L. E. Hinsie como “o ramo da ciência
que trata da morbidade e patologia da psíque
ou mente”. Honório Delgado conceitua
a psicopatologia como “... o conjunto ordenado
de conhecimentos relativos às anormalidades
(anomalias e desordens) da vida mental, em todos
os seus aspectos, inclusive suas causas e conseqüências,
assim como os métodos empregados com o
correspondente propósito”. Admite
que, como ciência, a Psicopatologia não
tem outro propósito senão “o
saber desinteressado sobre todas as manifestações
e modos de ser a atividade anímica”.
O seu fim último não é a
assistência ao indivíduo anormal
ou enfermo, mas “o conhecimento de sua experiência
e sua conduta, como fatos e relações
suscetíveis de serem formulados em conceitos
e princípios gerais”.
O objetivo da psicopatologia não deve ser
confundido com o da psiquiatria. O seu campo é
mais restrito e se limita ao estudo dos fenômenos
anormais da vida mental e tem como método
a fenomenologia.
A Karl Jaspers cabe o mérito de ter tornado
a Psicopatologia uma ciência autônoma
inteiramente independente da Psiquiatria.
Em épocas anteriores, alguns autores, com
Chaslin, fizeram tentativas de escrever “semiologias”
das enfermidades mentais, mas não uma psicopatologia.
Este é um dos grandes méritos de
Jaspers: ter contribuído para tornar a
Psicopatologia uma ciência autônoma.
Antes mesmo da publicação de sua
monumental Psicopatologia Geral, Jaspers
já defendia a necessidade de aplicação
da fenomenologia no sentido de atualização,
delimitação e ordenação
panorâmica dos fenômenos psicopatológicos
subjetivos, isto é, não objetivados.
Considerava necessário, como primeiro passo
a captação científica, “destacar,
delimitar, diferenciar e descrever determinados
fenômenos mentais, não claramente
atualizados e denominados regularmente mediante
determinadas expressões”.
Karl Jaspers (1883-1969) nasceu em Oldenburg,
nas proximidades de Bremen. Concluiu os estudos
básicos em sua cidade natal e recebeu o
grau de bacharel em letras, em 1901. Os cursos
universitários foram realizados em Heidelberg,
Munich, Berlim e Göttinga. Em primeiro lugar
escolheu a carreira de direito, com o objetivo
de exercer a profissão de advogado. Ao
mesmo tempo seguiu cursos de filosofia. Não
chegou a concluir o curso de direito, porque “ignorava
por completo a vida o qual servia, de sorte que
vi nele um complicado jogo intelectual com ficções
que não tinham nenhum interesse para mim”.
Resolveu, então, estudar medicina, concluindo
o curso em 1909, aos 26 anos, e defendeu a tese
de doutorado: Heimweh und Verbrechen
(Nostal e Crime). De 1908 a 1915, trabalhou na
Clínica Psiquiátrica de Heidelberg.
Conta Jarpers que, durante as reuniões
clínicas, ele costumava falar a respeito
de “fenomenologia”, considerando necessário
a aplicação desta filosofia para
a orientação da psicopatologia.
Ele sempre encontrou, no meio médico, grande
resistência à sua inclinação
filosófica.
Na época em que Karl Jaspers freqüentou
o “Instituto de Heidelberg”, trabalhavam
na Clínica Psiquiátrica Wilmanns,
Grühle, Wetzel, Homburger, Mayer-Gross e
muitos outros famosos justamente por terem adotado
a filosofia preconizada por Jaspers.
Em 1911, Jaspers foi aconselhado por Wilmanns
a escrever uma psicopatologia sob a orientação
do método fenomenológico, método
que vinha aplicando em seus trabalhos de pesquisas
clínicas. Finalmente, em 1913, Karl Jaspers
publicou a sua Allgemein Psychopatologie,
obra mestra que viria corporificar uma nova ciência
– a Psicopatologia – como a exercer
uma influência considerável nos destinos
da Psiquiatria.
As suas concepções teóricas
partem do enunciado de que o homem é uma
totalidade, compreendida esta como unidade psicofísica.
Colocando-se nesta posição, procurou
superar o dualismo cartesiano corpo-alma, tão
caro à psicologia racional e, ao mesmo
tempo, assinalar o equilíbrio e a mútua
integração das funções.
Deste ponto de vista, torna-se absurda a cisão
do ser humano em consciência e corpo, visto
que, cada uma destas expressões perde sentido
quando encaradas de forma isolada. Uma consciência
“desprendida de” não tem sentido,
do mesmo modo como o corpo não pode ser
compreendido como a soma de relações
mecânicas e topográficas, mantendo
com a parte consciente relações
puramente casuais. Desse modo, a distinção
entre os dados fenomenológicos e orgânicos
não conduz, como na psicologia racional,
à separação entre o corpo
e a parte mental, ao contrário, representa
uma fusão de relações de
compreensão.
A compreensão do ser humano como unidade
estrutural em si mesma e em relação
com o mundo, permite a penetração
no psiquismo alheio fundada na visão pluridimensional
do enfermo. Assim, ao transcender os limites da
consciência, a psicopatologia de Jaspers
encarou a enfermidade como uma forma de comportamento
que pode ter início tanto no orgânico
como no psíquico.
O comportamento do enfermo, que é a revelação
de um comportamento-em-a-enfermidade, deve ser
estudado em suas múltiplas e infinitas
relações com o mundo, porque a vida
é, segundo Jaspers, “existência
em seu mundo”: viver é viver em seu
mundo. Por isso, a visão unilateral dos
organicistas, ao centralizar a atenção
na parte corporal, deixa de perceber as influências
que, sobre o psíquico, exerce o ambiente,
ao qual o homem se adapta em virtude de sua ação
sobre o mesmo”.
Segundo Karl Jaspers, a psicopatologia tem por
objetivo o estudo descritivo dos fenômenos
psíquicos anormais, exatamente como se
apresentam à experiência imediata.
Difere, porém, daquele tipo de “descrição
coerente e completa, em termos os mais simples
possível”, adotada pelas ciências
naturais, porque a psicopatologia concentra a
sua atenção naquilo que constitui
a experiência vivida pelos enfermos.
Em sua opinião, quando se estuda a Psicopatologia,
deve-se levar em conta que “o fundamento
real da investigação é constituído
pela vida psíquica, representada e compreendida
através das expressões verbais e
do comportamento perceptível. Queremos
sentir, apreender e refletir sobre o que realmente
acontece na alma do homem. A inclinação
geral para a realidade é, na Psicopatologia,
a inclinação para a vida psíquica
real. Pretendemos conhece-la em suas conexões
que, em parte, são tão sensivelmente
perceptíveis como os objetos das ciências
naturais. Recusamo-nos a eliminar a vida psíquica
real, cuja compreensão confere plenitude
a nossos conceitos, por meio de pensamentos vazios,
oriundos de preconceitos, ou a substituí-la
por construções de natureza anatômica
ou de qualquer outra espécie. Sem a capacidade
e a vontade de se representar em sua plenitude,
não há possibilidade de se fazer
Psicopatologia”.
Para Jaspers, a psicopatologia “não
tem a missão de recapitular todos os resultados,
senão de formar um todo, sua função
visa ao esclarecimento, à ordenação,
à cultura. Tem de esclarecer o
saber nos tipos básicos dos fatos e na
multiplicidade dos métodos, resumi-los
numa ordenação natural
e, finalmente, levá-los à consciência
no todo cultural do homem. Cumpre uma tarefa específica
que vai além da investigação
especial do conhecimento”.
Desse modo, com esses objetivos específicos,
a psicopatologia de Jaspers utiliza a palavra
fenomenologia no sentido restrito de
uma psicologia das manifestações
da consciência, quer normais ou patológicas.
Compete à psicopatologia reunir os materiais
para a elaboração da teoria do conhecimento
dos fenômenos com os quais a psiquiatria
possa coordenar a sua ação curativa
e preventiva.
Ao lado da valiosa elucidação a
respeito dos conceitos “reação,
desenvolvimento e processo”, “delírio
primário e idéias deliróides”,
destaca-se a importante contribuição
sobre o “compreender” e o “explicar”.
Escreve a esse respeito: “Pela co-penetração
na psíque dos outros, compreendemos
geneticamente como um estado mental; por
meio da ligação objetiva de diversos
fatos em leis regulares, baseadas em
experiências repetidas, explicamos causalmente
os fenômenos”. Continua expondo o
seu ponto de vista: “... compreendemos como
o psíquico surge com toda evidência
do psíquico. Compreendemos desse modo,
único possível diante do psíquico,
quando o indivíduo se enfurece ao ser agredido,
quando o amante enganado se torna ciumento, quando
uma decisão e uma ação nascem
de motivos. Na fenomenologia imaginamos qualidades
particulares, estados individuais considerados
estáveis, compreendemos estaticamente,
enquanto aqui apreendemos a inquietação
do psíquico, o movimento, o conteúdo,
uma diferenciação; compreendemos
geneticamente (psicopatologia compreensiva). Mas
não apenas os fenômenos vivenciados
subjetivamente e sim, também, o psíquico
visto diretamente na expressão, o funcionamento
e as manifestações, as ações
e o mundo dos enfermos – tudo isso, que
antes percebemos estaticamente agora compreendemos
em suas relações genéticas”.
No amplo conceito de “compreensão”,
Jaspers faz a distinção entre a
compreensão estática e
a genética. A compreensão
estática ou descrição
fenomenológica emprega o mínimo
de interpretação. Consiste em descrever
o mais exatamente possível a experiência
vivida no momento, sem se interessar por sua origem
e conseqüências, permanecendo o examinador
restrito à realidade comunicada, em sua
qualidade original, em sua estrutura individualizante.
Desse modo, a fenomenologia circunscreve os fatos
de maneira rigorosa, procurando dar a maior precisão
aos conceitos e à ligação
estrita entre os termos empregados e os fatos
observados. “O que há de interpretação
nesse método é unicamente relativa
à margem de incerteza própria da
intimidade da vida anímica de cada pessoa
- na realidade inalcansável – e à
‘equação pessoal’ de
cada observador”.
Enquanto na compreensão genética
– a empatia – trata-se de apreender
as conexões psíquicas, o diferenciar
do psíquico e o manifestar-se psiquicamente.
“Aos termos estático e genético
acrescentamos a palavra compreensão quando
o contexto exige que se acentue a distinção
para evitar mal-entendidos. Do contrário,
compreender significa, em si mesmo, o
compreender genético”.
Acrescenta, ainda: “O psíquico aparece
como algo novo, de um modo, para nós, totalmente
desconhecido. O psíquico segue o psíquico
de maneira incompreensível. Um segue o
outro, mas não procede do outro. As etapas
psíquicas de evolução na
vida psíquica normal, as fases e períodos
da anormal são essas seqüências
temporais incompreensíveis. O corte longitudinal
do psíquico não pode ser compreendido
geneticamente de modo mais ou menos completo.
Deve ser explicado causalmente, como
objetos das ciências naturais, que, em oposição
aos psicológicos, não se considera
‘de dentro’, mas simplesmente ‘de
fora’. A fim de evitar confusões
empregamos sempre a expressão compreender
(Verstehen) para indicar a intuição
do psíquico obtida a partir de dentro.
O conhecimento de conexões causais objetivas,
que sempre são vistas a partir de fora,
nunca a chamaremos de compreender, senão
de explicar”.
Tanto a compreensão estática como
a genética procuram o sentido intrínseco
dos dados em sua própria aparição,
porém se em uma a introspecção
se dirige apenas ao atual, na outra é retrospectiva,
em busca do fio condutor, o qual pode passar despercebido
pelo observador. A qualidade de interpretação
desse método é inerente à
qualidade pessoal do indivíduo estudado
e do próprio observador, das alterações
possíveis no processo de rememoração
variável de acordo com as qualidades estritamente
pessoais.
A aplicação do método fenomenológico
e da psicologia compreensiva contribui para o
conhecimento de três espécies de
fenômenos:
a) aqueles que conhecemos por nossas próprias
experiências;
b) fenômenos que são acentuações,
diminuições ou contaminações
de experiências pessoais;
c) fenômenos que se caracterizam pelo fato
de não poderem ser representados por analogia.
A esse grupo pertencem as experiências que
se denominam “primárias”, pelo
fato de serem incompreensíveis.
Jaspers emprestava um valor extraordinário
à observação e ao registro
de casos clínicos. Desde os primeiros trabalhos
que o orientaram em caráter transitório
para a psicopatologia, Jaspers advertiu: “Não
se pode entender a psicopatologia sem a descrição
de casos isolados. Eles são as pedras angulares,
sem as quais iriam por terra nossas formulações
conceptuais”. Na oportunidade, criticou
alguns trabalhos dos seus contemporâneos,
os quais precediam de observações
clínicas. Outros procuravam basear-se em
histórias clínicas que se encontravam
publicadas na literatura médica, porém,
diz Jaspers, onde elas não são “suficientemente
ricas ou o autor correspondente não seja
suficientemente claro, eles deveriam limitar-se
a apresentar casos próprios, mesmo com
o perigo de mostrar coisas conhecidas”.
O conhecido é o que se encontra na literatura.
“Tudo mais é desconhecido, mesmo
que se encontre muito difundido através
de conversações pessoais”.
Desaconselhava tomar como base as descrições
gerais dos tratados pelo fato de terem um significado
efêmero, “na medida em que nas descrições
de quadros nosológicos se encontra
elaborada uma descrição geral dos
estudos de casos isolados, os quais, em uma investigação
posterior, devem aparecer com freqüência
essencialmente diferentes”. Criticou, também,
a maneira superficial como eram feitas as observações
clínicas, por insuficiência de conhecimentos
ou por desinteresse pela especialidade. “O
psiquiatra, na maioria das vezes, faz uma observação
muito breve de seus pacientes”.
Posteriormente, a fenomenologia aplicada à
Psicopatologia seguiu rumos diferentes aos preconizados
por Jaspers. Ao invés de centralizar a
atenção no fenômeno psíquico
elementar, a vivência, como recomendava
Jaspers, o psicopatologista toma, em primeiro
lugar, como objeto de estudo, grandes conexões
psíquicas, inclusive a totalidade da história
vital interna. Nessas conexões psíquicas
se inclui o vivido pelo enfermo, mesmo quando
não tenha sido experimentado como um saber
preciso. Em segundo lugar, o seu objetivo consiste
na apreensão de significações
essenciais e de estruturas básicas, o que
difere da descrição estática
exigida por Jaspers. E, por último, impõe
uma completa transformação no método
fenomenológico, que passa a ter como ponto
culminante o ato fenomenológico,
em que o psicopatologista exercita as suas possibilidades
de intuição e reflexão –
para extrair significações essenciais
e estruturas básicas daquilo que foi vivenciado
pelo enfermo, do seu mundo interior.
A Psicopatologia como ciência autônoma
presta uma colaboração inestimável
a um número apreciável de ciências
regionais:
1º) à Psiquiatria, emprestando
a sua colaboração no conhecimento
dos fenômenos psíquicos anormais,
conhecimento indispensável ao exame psíquico
dos enfermos;
2º) à Psicopatologia Forense,
prestando esclarecimentos e orientações
na descrição dos sintomas subjetivos
apresentados pelos enfermos mentais isentos de
responsabilidade penal;
3º) à Psicologia do normal,
indicando as diferenças essenciais entre
os fenômenos psíquicos normais e
patológicos;
4º) à Psiquiatria cranscultural,
mostrando as semelhanças e as diferenças
nas manifestações da doença
mental em culturas distintas e, sobretudo, indicando
as manifestações patológicas
de coletividades anormais;
5º) à Antropologia cultural,
indicando o que há de patológico
nas crenças, regras de conduta e comportamento
de determinado grupo social;
6º) à Sociologia, oferecendo
uma explicação científica
para os desvios anormais de padrões de
comportamento coletivo.
Assim, o campo da Psicopatologia vai se ampliando
em função de suas relações
com outros ramos do conhecimento humano, enquanto
o âmbito da Psiquiatria vai se estreitando
cada vez mais, sendo atualmente compreendida como
um ramo da medicina que tem como objetivo o estudo,
o tratamento dos enfermos da mente e a assistência
e profilaxia das doenças mentais.
A compreensão correta dos objetivos e dos
limites da Psicopatologia contribui para o desaparecimento
nos Tratados de Psiquiatria da parte geral e para
impossibilitar o aparecimento de “semiologias”
e “propedêuticas” das enfermidades
mentais.
O que é correto e o que está definitivamente
assentado é a existência de duas
independentes, mas que se completam: a Psicopatologia
e a Psiquiatria.
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