ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES TÉCNICAS
SOBRE A ENTREVISTA
Harry
Stack Sullivan
TIPOS
DE ENTREVISTAS PSIQUIÁTRICAS
Antes
que inicie, em detalhes, os estudos das etapas da entrevista
psiquiátrica, gostaria de mencionar algumas considerações
que afetam o curso da entrevista em geral e do questionário
detalhado em particular. Uma delas é o propósito
ostensivo da entrevista. Se esta obedece ao propósito
de descobrir se há uma razão adequada
para despedir uma pessoa de seu emprego conforme desejo
de terceiro, naturalmente o entrevistador não
abranja todos os tópicos que abrangeria se estivesse
tentando descobrir, por exemplo, porque o sujeito sofre
de ejaculação precoce em seus relacionamentos.
Assim, o entrevistador acha-se dirigido pelo propósito
da entrevista; não obstante, as suposições
nomeadas não serão mudadas e a intenção
do entrevistador de ser útil à pessoa
não pode sucumbir, pois é a razão
pela qual o sujeito revela aquilo que o entrevistador
deseja saber.
Para
dar uma idéia aproximada da exposição
formal dos propósitos ostensivos das entrevistas
psiquiátricas, permitam-me que mencione, em primeiro
lugar, sobre a consulta realizada com propósitos
de diagnóstico, de aconselhamento ou talvez,
de facilitar um tratamento adequado em outro lugar.
Ou seja: o psiquiatra determina o caráter das
dificuldades pessoais na vida do entrevistado e o aconselha
com quem e de que maneira poderá obter um tratamento
ou benefício. Todavia, quando o entrevistador
não contempla a possibilidade de um outro tipo
de tratamento intensivo para o paciente, tem que realizar
uma atividade terapêutica intensa, ampliando o
sentido daquilo que é dito pelo paciente; o paciente
pode não estar em condições nem
mesmo para revelar suas dificuldades pessoais, a não
ser que fique evidente que seu médico lhe será
útil no que diz respeito a apoiá-lo, pelo
menos no momento.
Temos
também a entrevista que é a conversa inicial
sobre psicoterapia breve ou um tratamento continuado
em potencial, quer dizer que o entrevistador se aproxima
do diagnóstico e pelo seu conhecimento profissional
realiza, ele mesmo, o tratamento.
Estas
são duas questões muito diferentes. No
primeiro tipo de consulta psiquiátrica há
uma conclusão predeterminada que, a não
ser que o paciente seja uma pessoa encantadora, além
de seus sonhos fantásticos, este médico
lhe dirá simplesmente aonde ir para tratar-se.
Parece-me que esta é uma tarefa definitivamente
mais fácil do que a entrevista na qual o psiquiatra
não apenas descobre, segundo se espera, algumas
das principais queixas do paciente, mas também
o comunica que pode ajudá-lo a eliminá-las.
O elemento da futura relação tem um tom
tão intenso em algumas entrevistas do segundo
tipo que é sabido que psiquiatras encontram dificuldades
com estes pacientes no processo de tratamento e na obtenção
de algum tipo de resultado. Por outro lado, quando já
se sabe que o entrevistador não realizará
milagres, que apenas se limitará a dizer ao paciente
aonde ir e porquê, facilita de forma notável
a obtenção das informações
necessárias.
O próximo
tipo de entrevista que desejo mencionar é realizado
também com o propósito de diagnosticar
uma dificuldade do viver, porém com um propósito
especial em influir mais no ambiente do que no paciente.
Por exemplo: há esposas que algumas vezes chegam
ao psiquiatra com a finalidade de procurar tratamento
para seus esposos, ou jovens para seus noivos e vice-versa,
com a idéia de que isso talvez consiga eliminar
algumas divergências nessas relações.
Que eu saiba, algumas vezes se consegue. Ocorre também
que professores procuram um consultório psiquiátrico
para consultar sobre possíveis tratamentos de
crianças difíceis de se conduzir, com
a idéia de que isso poderia facilitar a tarefa
de ensiná-los a conviver na mesma sala de aula
que os demais. Conheço casos de sacerdotes que
consideravam que lhes era necessário obter alguns
conhecimentos técnicos com respeito a suas relações
com os comungantes. Padres, carcereiros, juízes
e inteligentes membros de estudos jurídicos se
perguntam se algum pequeno conselho técnico relativo
à saúde mental e a prováveis necessidades
de seus clientes não resultaria em maior eficácia
em atendê-los. Em tais casos supõe-se que
o psiquiatra encontrará soluções,
no que concerne à situação apresentada,
influindo em outras pessoas ou instituições.
Porém, isso não elimina a necessidade
de ajudar também a pessoa que procura a entrevista
se o entrevistador obtiver realmente os dados que necessita;
isso não impede que se faça algo em favor
dessa pessoa para ajudá-la a viver.
Há
também um crescente campo de entrevistas relacionadas
com a orientação de profissionais de empresas
comerciais ou industriais. Assim, é possível
que se peça ao psiquiatra que entreviste um candidato
à promoção ou transferência
de alguma organização que possua um funcionário
convencido de que algo se pode lucrar com o estudo da
personalidade. Ou, se uma pessoa falta repetidamente
ao trabalho devido a alguma enfermidade, pode aconselhá-la
que consulte a um psiquiatra. Tais procedimentos são
cada dia mais aceitos no crescente campo da medicina
industrial. Coincidentemente, parece haver um número
cada vez maior de generais nos exércitos da Grã-Bretanha,
Estados Unidos e indubitavelmente nos países
da antiga União Soviética, que já
descobriram que um oficial a mando de uma companhia
que chega a relacionar-se de um certo modo com seus
soldados poderia dizer: "Juan: parece que não
está muito bem hoje. O que acontece? Más
notícias de sua casa?" e recebe uma
resposta mais ou menos como esta: "Desconfio
que minha noiva se interessou por outro",
e logo fala cordialmente com o soldado, o comandante
cuja companhia se distingue entre todas as demais pelo
número reduzido de faltas sem permissão,
e uma proporção surpreendentemente pequena
de perturbações psiconeuróticas
em combate. Dito de outra forma, começa a ficar
claro que uma proporção importante de
aparente dificuldade, no que refere à produtividade
das pessoas, está relacionada com problemas obscuros
que nada tem a ver com o trabalho da pessoa e que se
origina, por exemplo, na família, na comunidade,
na congregação religiosa ou em qualquer
parte e que pode ser de grande utilidade ter à
mão uma pessoa que não se mostre muito
liberal com seus conselhos, porém que seja bastante
hábil em sua missão de descobrir aquilo
que preocupa o outro, de modo que lhe seja possível
dizer: "Não lhe parece que isto ou aquilo
o prejudique? Por que não procura deixá-lo?"
Uma coisa tão simples como esta produz um efeito
imensamente útil com relação a
essas dificuldades de direcionamento pessoal e contribui
com a melhora das relações entre o patrão
e seus empregados, entre o oficial e seus soldados e
outros tipos de complicada cooperação
interpessoal.
Como
disse, o propósito manifesto da entrevista tem
muito a ver com o procedimento exato, porém não
obstante, é de fundamental importância
que o entrevistador transmita ao entrevistado maior
sensação de capacidade, de adaptação
para seguir a vida e de fazer melhor as coisas, possivelmente
como resultado da entrevista, ainda por exemplo, no
caso em que o entrevistado pode ser despedido como conseqüência
de se descobrir, tanto ele como o entrevistador, que
tem uma grande desvantagem em seu trato com a organização
em que trabalha. Não é suficiente que
o entrevistador descubra algo e demonstre de maneira
convincente o que descobriu. O entrevistador deve também
pretender se isentar disso.
O USO DAS TRANSIÇÕES NA ENTREVISTA
O
tema das transições é de um significado
tão peculiar em relação à
totalidade do procedimento da entrevista, que desejo
referir-me a ele antes de prosseguir. Ou seja, a construção
de transições é de notável
importância no questionário detalhado,
é uma parte necessária da técnica
das entrevistas, em todas as suas etapas. E é
tão peculiarmente uma abstração
de técnica, que nada tem a ver com o propósito
ostensivo, porém vale a pena que o entrevistador
a tenha perfeitamente organizada em sua mente, seja
qual for a base sobre a qual se entrevista alguém.
Quando
falo sobre a forma de realizar as transições,
refiro-me simplesmente a como o psiquiatra deve atuar
nas entrevistas. É imperativo, se deseja saber
qual é sua posição em relação
à outra pessoa, que avance ao longo do caminho
e que pelo menos, seja possível a outra pessoa
seguí-lo, claramente, de tal maneira que não
se perca por completo o respeito que se pretende conquistar.
Quando se perde — e devo dizer que isso acontece
amiúde — perde também o psiquiatra,
sem que haja vantagem para nenhum dos lados. Então,
sem que o paciente se dê conta, e muitas vezes
o psiquiatra tão pouco, começa a atuar
com grande vigor a lei que disse que, passado certo
limite, os benefícios não são produzidos
proporcionalmente ao empenho que se espera. É
ideal, se possível, avançar passo a passo,
sinalizando aos outros, a fim de que sempre haja certo
consenso a respeito do que se está discutindo.
Lamentavelmente, para muitos, isso significaria que
o psiquiatra teria que viver vários meses com
os pacientes; assim, quando se está conduzindo
uma entrevista psiquiátrica, é possível
que seja necessário desviar-se dessa idéia
de proceder sempre na direção de um objetivo
que não é desconhecido, porém que,
não obstante, pode ser apontado a fim de que
o paciente possa enxergar o objetivo do psiquiatra.
Na realidade, o entrevistador deve trocar de direção
com muita freqüência. Durante esse processo,
abordará muitos tópicos que, ainda que
interessem ao paciente, são identificados pelo
psiquiatra como de improvável utilidade, ou seja,
demandariam mais tempo e não teriam qualquer
provável utilidade. É preciso perguntar
sobre certas coisas que o paciente tem grande habilidade
para evitar e, como resultado, a entrevista deverá
proceder às vezes de uma situação
obscura para outra, com o entrevistador nem sempre muito
seguro de que o paciente saiba o lhe foi perguntando
ou que entenda bem o que o paciente disse.
Considero
as transições nas entrevistas como um
dos mais importantes detalhes técnicos que sempre
devem suscitar considerável atenção,
e que requerem uma espécie de serena e contínua
vigilância em todo o trabalho do psiquiatra no
trato com estranhos, de maneira séria e íntima.
Observe-se que quando se fala de trocar de tema —
esta é uma maneira de dizê-lo — o
paciente não revela toda história. Há
pessoas que, a meu ver, jamais permanecerão no
mesmo tema em observações seguidas. E
há entrevistadores que parecem não melhorar
muito esta performance. É sumamente fácil
passar do que se estava discutindo a outra coisa qualquer
que surgiu de repente na mente, e se o psiquiatra faz
isso sem notar o que fez, é bastante provável
que obtenha as idéias mais fantásticas
sobre o entrevistado. Desta maneira, convém sempre
observar — com a mesma facilidade com a qual se
observa um mundo de coisas que se estão pronunciando,
sem perder seu lugar — quando se muda o tema da
conversa. Esta troca de tema pode muito bem ser tratada
de três maneiras importantes e que não
resultam em abstrações artificiais.
A primeira
delas poderíamos denominá-la de transição
suave. Quando o entrevistador deseja trocar
o tema da conversa, pode realizar a transição
por meio de uma declaração adequada e
pelo menos superficialmente verdadeira, que diz precisamente:
"Sim, sim: e isso nos leva a falar sobre...?
Certo?" É possível que o paciente
se esgote tentando adivinhar de que maneira este tópico
foi introduzido, contudo, desta forma o entrevistador
o vai conduzindo e introduzindo um novo tema. Se lhe
ocorrer que o entrevistador empregue algum pequeno comentário
como, por exemplo: "Ah, sim... Bom: algumas
vezes não se deve a isto além do que se
aponta.. E me pergunto: você teve, por acaso,
alguma experiência como essa?" Em outras
palavras, vai de uma coisa para a outra de uma maneira
completamente suave, para que seu entrevistado tenha
a sensação de que essa é uma indagação
muito clara e verdadeiramente colaborativa. Agora bem:
o entrevistador provavelmente não fará
isso, se não se dá conta de que vai mudar
de tema. E se não se dá conta de tal coisa,
é bem possível que perca seu cliente.
Na
transição acentuada não
se emprega uma dessas maneiras corteses de transferir-se
o psiquiatra e seu paciente, de um tópico para
outro, sem que o primeiro indique, casualmente: "Sim,
o mundo está a ponto de experimentar alguma leve
mudança." No que se refere a mim, geralmente
começo a sinalizar como uma engrenagem na qual
foram colocados alguns grãos de areia, para indicar
que algo está a ponto de acontecer. Quero deixar
por um lado aquilo que está passando, enfaticamente,
não de tal maneira que seja esquecido para sempre,
mas com destaque para perturbar o quadro, como diriam
alguns velhos psiquiatras experientes. Quero que aquilo
que se discutiu não exerça influência
sobre o que vai ser discutido na seqüência.
Suponhamos que o entrevistado tenha me mostrado que
possui alma grandiosa. Então, emito algum som
preliminarmente e em seguida digo algo, por exemplo:
"Com que tipo de pessoa você vê
a si mesmo como verdadeiramente odioso?" Na
verdade, provavelmente, eu não diria uma coisa
tão cruel. Porém, a questão é
que enquanto o paciente estiver possuído pela
idéia de convencer-me a respeito da maravilha
que é a sua alma, seria na verdade tosco que
eu procedesse suavemente ao descrever como de fato o
entrevistado é um indivíduo enfadonho.
Porém, numa mudança brusca, é possível
que ele esqueça o que estava falando. As pessoas
costumam mostrar-se um tanto inseguras quando se sugere
que o tempo vai transformá-las e que essas predições
não resultam da fé. Porém, de qualquer
modo, causa uma pequena interrupção, uma
espécie de pausa vazia, que certamente não
é suave. E logo, sem comoção alguma
— sem assustar o paciente introduzo um novo tópico.
Desta maneira, os últimos dados não são
"contaminados" pela investigação
anterior, como poderia ocorrer numa transição
suave.
Temos
também, a transição abrupta,
na qual, lamento muito dizê-lo, muitos entrevistadores
parecem ser verdadeiros maestros. Não quisera,
de modo algum, incentivá-los a melhorar, todavia,
mais essa capacidade. Mas, a mesma tem suas utilidades.
Devo dizer que não estou me referindo a uma transição
tão abrupta que o paciente se assuste e não
lhe seja possível esclarecer o que foi dito ao
entrevistador. Quero dizer que se introduz um novo tópico
na conversa que é pertinente porém que
foi introduzido no que poderia chamar-se um ponto socialmente
inoportuno, e sem o menor aviso. Isso pode ser feito,
por exemplo, para evitar ou para provocar ansiedade.
Aqui poderia dizer que muitas entrevistas passam do
informativo ao nebuloso, simplesmente porque o paciente
tornou-se agudamente ansioso; porém por outro
lado, algumas entrevistas jamais chegariam a ser entrevistas
psiquiátricas, se não se fizesse com que
o paciente fosse dominado pela ansiedade. A questão
se relaciona com a maneira de fazer com que o paciente
se torne ansioso. Isso é feito de forma apropriada
quando o paciente é levado através de
um período perturbador até produzir material
definitivamente reconfortante, ou desde algo que estava
sucedendo, com risco acentuado para a situação,
até algo cujo resultado seja tranqüilizador.
Para
resumir, a transição suave
é utilizada para passar pouco a pouco a outro
tópico; a transição acentuada
economiza tempo e aclara a situação; e
a transição abrupta é
utilizada, comumente, seja para evitar uma ansiedade
perigosa, ou para provocar ansiedade quando se observa
que de outra maneira não é possível
chegar ao que se busca.
AS
ANOTAÇÕES DURANTE A ENTREVISTA
Geralmente,
se alguém pede que expresse minha opinião
a respeito da conveniência de anotar o transcurso
de uma entrevista, considerando tal ação
do ponto de vista de seu efeito sobre o psiquiatra e
sobre o paciente. Há uma grande variação
entre as pessoas, referente ao grau no qual um certo
comportamento ou conduta é automático.
Dessa maneira, pode haver pessoas tão competentes
em taquigrafia que podem anotar, quase automaticamente,
uma grande parte do que estão escutando, porém
sem que isso atrapalhe a atenção de sua
mente consciente na tarefa de participar do trabalho
da entrevista. Pode até haver pessoas capazes
de fazer anotações que serão úteis
posteriormente, sem por isso desviar em absoluto sua
atenção durante a entrevista. As únicas
vezes que fiz anotações durante uma entrevista,
com a sensação de que não comprometeria
o trabalho a realizar, foi com pacientes cujo ritmo
de produção era muito lento: certos esquizofrênicos
perturbados e um paciente que sofria de grande desordem
na região entre a esquizofrenia e o mal obsessivo.
Os pacientes esquizofrênicos experimentam uma
grande dificuldade no que se refere a completar as frases
que iniciam. Muitas vezes se perdem antes de terminar
a frase, falam relativamente com pouca freqüência,
perdendo muito tempo em iniciar e finalizar. Por estar
profundamente interessado, de forma teórica,
em saber como era aquela desordem de pensar e falar,
registrei as horas transcorridas com alguns esquizofrênicos
perturbados. Tive um paciente que falava tão
lentamente e possuía um estado teoricamente tão
importante, que escrevi ao pé da letra tudo que
disse. Lamentavelmente, temo que essa transcrição
não estará à disposição
para a posteridade, porque não é possível
"traduzir" aquilo que escrevo sem perder duas
ou três vezes mais tempo do que apliquei em conduzir
a entrevista. E isso, a seu modo, relata uma história:
o fato de que eu não estava prestando atenção
suficiente para escrever legivelmente sugere que estava
muito ocupado em outra coisa. E o inverso disso é,
mais ou menos, minha opinião no que se refere
a tomar notas: se se presta a estas anotações
atenção suficiente até o ponto
de que sejam legíveis, isso pode muito bem interferir
em coisas muito mais importantes para o paciente, já
não para o psiquiatra.
O psiquiatra
realiza, segundo se supõe, três coisas:
estuda o que o paciente pode querer dizer com aquilo
que expressa; estuda a melhor maneira em que ele mesmo
pode expor o que deseja comunicar ao paciente; e, ao
mesmo tempo, observa o tempo geral dos assuntos que
se comunicam ou que estão discutindo. Além
disso, tomar notas que tenham um valor mais que evocativo,
ou que cheguem proximamente a constituir uma constância
verbatim (literalmente) do quanto foi dito
na entrevista, na minha opinião, é algo
que está acima da capacidade da maior parte dos
seres humanos.
Ainda
quando o entrevistador é capaz de fazer tudo
o que acabo de descrever, quando trata com pacientes
que são desconfiados, até paranóides
em suas atitudes, o fato de tomar notas garantirá
provavelmente que o entrevistador ouça um grupo
de especialistas em comunicações, nas
quais todas as sutilezas que de outro modo poderia captar
estão ausentes. Certamente, há ocasiões
— por exemplo quando obtenho dados sociais gerais
de uma pessoa — em que me parece que deveria tomar
algumas notas. Em tais ocasiões digo ao paciente
que possuo realmente um dom especial para esquecer tudo
que é útil para mim e que, portanto, se
ele não se importa farei anotações
sobre o número de irmãos que tem e algumas
outras coisas sem importância. Não obstante,
em outros momentos, quando me parece possível
obter algo importante de uma entrevista, preocupo-me
muito de que estas anotações passem completamente
despercebidas para o paciente.
Nos
questionários ante as entrevistas da junta médica,
o paciente não só se encontra na presença
de um taquígrafo, como também de um grande
número de psiquiatras. Muitos psiquiatras consideram
isto como uma prática relativamente cruel, porém
visto que descobri que se realizava em vários
lugares onde trabalhei, procuro aproveitá-las
cada vez que posso. Digo que o fato de estar tomando
uma versão taquigráfica da seção
é inicialmente perturbador para muitos pacientes,
porém há tantas outras coisas que perturbam
e desagradam sobre o questionário que a maior
parte dos pacientes, acredito, esquecem que suas palavras
estão sendo anotadas, antes que a seção
termine.
Contudo,
devo dizer terminantemente que, acredito, o fato de
tomar notas certamente não facilita a comunicação.
Resumindo,
acredito que os psiquiatras, quando estão realmente
empenhados em conduzir e compreender uma entrevista
psiquiátrica, têm muita preocupação
em que lhes sobre tempo para tomar notas, ainda quando
tais notas não exerceram influência perturbadora
sobre o paciente. Creio também que os pacientes,
como qualquer um de nós, podem falar em geral
com relativa liberdade, se somente suas memórias
e a do entrevistador serão consultadas posteriormente
sobre o que foi dito. Todos nos tornamos consideravelmente
mais cautelosos se sabemos que haverá um registro
taquigráfico ou escrito da sessão. Pessoalmente,
e devido a uma extensa experiência, é possível
falar na presença de um taquígrafo ou
de um gravador; preocupa-me mais se o paciente conseguiu
ou não expor devidamente o que estava querendo
dizer do que o efeito inibidor de um gravador. Contudo,
se imaginasse que um estranho levasse a gravação
antes que eu pudesse revisá-la, é possível
que não pensasse o mesmo sobre esta questão,
apesar do que tenho uma fé considerável
e digo o que quero dizer, afora, certamente, desses
acidentes sem importância que se produzem quando
alguém fala e do cansaço que algumas vezes
me impede de encontrar as palavras que estou buscando.
Estas são vantagens que raramente as pessoas
que se dedicam à entrevista psiquiátrica
possuem. Ainda quando em seus melhores momentos se sintam
perfeitamente capazes de falar o idioma, a entrevista
psiquiátrica é uma situação
de considerável esforço, durante a qual
os entrevistadores podem sentir-se em desvantagem. E
a idéia de que se está gravando só
faz aumentar ainda mais esta desvantagem.
Uma
versão literal de uma entrevista, a
não ser que tenha sido adequadamente registrada,
é quase invariavelmente enganosa em alto grau.
Tenho
feito algumas gravações de entrevistas
que considero como material bastante didático,
porém quando foram ouvidas por outros colegas,
descobri defeitos que não havia percebido antes
e que agora estavam visíveis. Em outras palavras
o significado completo de uma conversação
não se encontra no contexto verbal ao pé
da letra da comunicação, senão
que reflita em toda classe de sutilezas. Por exemplo,
algumas trocas rápidas de tons que sugerem a
mais velada insinuação de irritação
por parte do psiquiatra, desviam momentaneamente o paciente
na tentativa de encobrir com razoável conformidade
aquilo que ele crê que é inócuo
dizer e aquilo que de fato possa ser. Tais coisas não
aparecem na gravação verbatim
(literal) mais perfeita. Desta maneira, para dar a uma
terceira pessoa uma noção de tudo que
ocorreu em uma entrevista, alguém se verá
obrigado a comentar o informe escrito, agregando as
impressões que acompanharam a distintas declarações
e explicando por que as coisas foram expostas dessa
forma, além de muitos outros detalhes. Somente
desta maneira a riqueza do intercâmbio em uma
situação com duas figuras centrais poderia
começar a ser visível.
A
INTEGRAÇÃO INTERPESSOAL DO ENTREVISTADOR
E DO ENTREVISTADO
Gostaria
de revisar agora algumas coisas que disse, porém
de um ponto de vista diferente sob certo aspecto. O
que já disse sobre o curso da entrevista e através
de suas diferentes etapas e a transição
de tópico para tópico, pode se pensar
que significam o começo, meio e fim de uma situação
interpessoal. A psiquiatria estuda as relações
interpessoais que ocorrem unicamente em situações
interpessoais; tais situações envolvem
mais que a simples presença de duas pessoas em
algum lugar, referem-se a duas pessoas que estão
relacionadas uma com a outra, e a isso chamamos integração.
Porém há mais ainda: uma situação
interpessoal, da qual a entrevista (situação-entrevista)
é um exemplo particular, está integrada
e elaborada e o curso de seus feitos determinado, até
certo ponto, por algo das duas pessoas envolvidas, que
é recíproco, e cujas manifestações
coincidem aproximadamente no tempo. Assim, alguém
pode dizer que a situação-entrevista,
ou série de situações, está
integrada por motivos coincidentes e recíprocos
do entrevistado e do entrevistador.
Pode
aprender-se muito sobre a entrevista psiquiátrica,
se a consideramos sob o ponto de vista das razões
que a tenham motivado, ou seja, se examinamos os motivos
recíprocos que coincidem em uma entrevista específica.
Do que sabemos sobre a integração das
situações interpessoais, concluo que:
uma entrevista tem que prometer utilidade e benefício
para o entrevistado; ele se sente com direito a um certo
benefício derivado dela, e deve obter esse benefício.
Se esta esperança não se materializa de
alguma maneira, o psiquiatra poderá não
ter idéia alguma sobre o que está ocorrendo.
Deste modo, por mais que pareça inferior, desafortunado,
necessitando de outra pessoa, o entrevistador tem que
se dar conta de que seu benefício na entrevista
precisa ser algo mais que imaginário. Deve ter
um motivo suficiente para prosseguir a mesma; do contrário,
ainda que pareça que está respondendo
realmente as perguntas formuladas pelo entrevistador,
na realidade estará fazendo algo totalmente distinto.
Como
especialista na observação participante
das situações interpessoais, o entrevistador
tem a tarefa de influir de tal maneira na entrevista
que o curso, estreitamente observado, de sua participação
revele obstáculos principais e as maiores vantagens
no viver que constituam características relativamente
duradouras do entrevistado. Ou seja: isso é um
grande requisito, e minha experiência sugere que
muitos de nós, depois de descobrir algumas
dificuldades e obstáculos do paciente, podemos
empregar uma vivíssima imaginação
que nos proporcione algo assim como um quadro geral
compreensivo do entrevistado como pessoa. A necessidade
de fazer isso é compreensível, porém
a verdade é que a prática rende idéias
muito distorcidas. A intervenção nada
evidente do entrevistador (psiquiatra) não servirá
para revelar todas as dificuldades e vantagens razoavelmente
prováveis do entrevistado em toda sua plenitude,
e tampouco dará como resultado que as mesmas
sejam documentadas ou provadas; algumas delas somente
serão indicadas. Porém, assim mesmo não
deverão ser desconsideradas ou deixadas a cargo
da imaginação do entrevistador em retrospectiva,
quando está escrevendo seus informes sobre a
entrevista.
São
os fatos interpessoais e a norma de seu curso que geram
as informações ou dados da entrevista;
é dizer que o entrevistador experimenta a maneira
em que os fatos interpessoais se seguem um ao outro,
que relação ou relações
aparentes têm um com outro, que fraquezas se produzem,
e assim sucessivamente. Deste modo, os dados da entrevistas
podem proceder, tanto das respostas e perguntas, senão
da oportunidade e esforço do que foi dito, dos
pequenos mal-entendidos que surgem aqui e ali, das ocasiões
em que o entrevistado se desviou do tema, talvez oferecendo
voluntariamente fatos muito importantes que não
haviam sido solicitados, etc. Assim, conforme o entrevistador
vai se tornando mais hábil, se dá conta,
com clareza, que o que deve fazer é observar
o curso dos fatos e a forma dos mesmos, como modelo
de progresso, dando origem a um campo amplo de dados
sobre a outra pessoa com a qual está trabalhando.
O emprego desses dados e sua capacidade para trazer
deduções aumentarão com a experiência.
Contudo, até que não possua a informação
que pode ser obtida desta base de observação
participante, não terá absolutamente nada
com que iniciar; e não é possível
obtê-lo pelo procedimento encantadoramente simples
de sentar-se ante a uma escrivaninha e, com uma sensação
de isolamento total da pessoa que está a sua
frente, dissipar pergunta após pergunta e deixar
a exatidão das respostas em uma planilha.
A quase
inevitável obscuridade extrema dos fatos, em
princípios da entrevista e a contínua
complexidade de um número tão grande desses
feitos que integram seu curso, fazem com que seja útil
ser modestamente metódico e, ao mesmo tempo,
estar constantemente alerta. Dito de outra maneira,
o entrevistador se dá conta do tipo de dados
significativos que pode esperar, ainda que minimamente,
em distintas fases da entrevista; toma medidas para
assegurar-se desses dados; legitima a medida para uma
validação subseqüente de tudo aquilo
que lhe pareça indefinido ou improvável;
e anota com o maior cuidado toda ocasião na qual
o material que se poderia esperar, ainda que minimamente,
não apareceu. Tudo isso já foi destacado:
a conveniência de incluir em cada entrevista,
metodicamente porém sem ser inoportuno, as quatro
fases que foram mencionadas e de dar, na iniciação
formal da entrevista, certos passos bastante definidos.
Devido a, algumas vezes, impossível complexidade
das relações com outra pessoa que nos
é relativamente desconhecida, é prudente
que o entrevistador persista em resumir as maneiras
como esses passos podem ser dados, desfazendo tipos
de ação que operem tão efetiva
e inadvertidamente que não tenha que investir
tempo em estudar o que será o passo seguinte.
Porém,
visto que nenhum resumo antecipará as variações
que ocorrem na relação pessoal com um
estranho, não é suficiente que o entrevistador
seja exatamente o que se espera; tem que estar também
alerta a qualquer sugestão de que algo sucedeu
inesperadamente, porque as novidades que se
apresentam, em uma investigação metódica
não visível, são precisamente o
que diferenciam seus resultados. Por exemplo: entre
as características mais significativas do curso
dos fatos que integram uma entrevista, temos as ausências
desses fatos que, toda ou grande parte, da experiência
do entrevistador o leva a esperar. Uma pessoa pode elaborar
todo um curso de dados históricos que, pela experiência
do entrevistador, significa sempre que por trás
podem vir certos fatos. Quando não se produz
esta seqüência, no relato de um paciente
determinado, o entrevistador não tem porque se
alterar, porém ao mesmo tempo não deve
ignorar essa omissão. O fato de que os dados
esperados de um certo movimento numa entrevista não
têm aparecido, pode ser revelador e,
de qualquer modo, é demasiado promissor para
que seja sobreposto ou esquecido.
De
maneira bastante similar, o psiquiatra observa todos
os pontos em que o paciente parece não compreender
as coisas que o psiquiatra considera necessárias
ou importantes na vida ou no trabalho do paciente. Em
tais pontos, em lugar de concluir que está tratando
com uma pessoa estúpida, o psiquiatra expõe
algumas insinuações sobre o que pode ser
a informação, para determinar se, de fato,
falta essa compreensão. Se esse é o caso,
pode formular algum comentário que deve ser o
mais simples, claro e discreto quanto possível,
para ver o que acontece, porque há um bom número
de pessoas que necessitam apenas de uma insinuação
para compreender e deduzir certos fatos e é bastante
útil descobrir isso.
Ou
— como outro exemplo — o psiquiatra pode
se confundir em função de algo que o paciente
disse. Isto nem sempre justifica que o entrevistador
se incorpore de repente da situação e
formule perguntas, há momentos em que é
bastante prudente esperar, para resolver qualquer dúvida
que se possa ter. Contudo, se os fatos não foram
clareados num ponto em particular, o entrevistador deve
saber identificar isso, de maneira que quando
uma oportunidade apareça, numa transição
adequada, ou quando parece que nada acontece em especial
e o paciente está esperando suas perguntas, lhe
seja possível suscitar novamente esse ponto,
e indicar que está em dúvida sobre o seu
verdadeiro significado. A pessoa chega a compreender
rapidamente que o que foi dito pode não ser entendido
perfeitamente pelo interlocutor, e mostra razoável
respeito ao ilustrar as diversas conclusões expostas.
Então, a observação de todas essas
coisas é uma função que compete
ao entrevistador, melhor dizendo, a qual ele está
atento. Por mais sereno que seja o curso da entrevista,
o entrevistador tem que estar sempre atento a algo novo
ou inesperado. Essa é uma função
que, de certa forma, está intimamente relacionada
com esse tipo de atividade que a pessoa denomina "pensamento",
porém na realidade é bem mais amplo do
que definimos como "pensamento". Para propósitos
mais precisos, podemos aplicar a esta atividade o termo
"processo secreto" — algo que não
pode ser observado, senão unicamente deduzido
— que contrasta com os outros tipos de operações
referentes, ou seja as abertas e evidentes, que podem
ser observadas, ainda que algumas vezes somente pelos
iniciados. Alguns poderão dizer que os processos
secretos podem ser observados por meio da introspecção.
É indubitável que alguns poderiam ser
observados por esse meio, se não fosse o fato
de que o processo da introspecção tem
a probabilidade de destruir a claridade dos processos
secretos. De qualquer maneira, o campo de processos
secretos da conduta humana é muitíssimo
mais amplo que qualquer coisa que o homem tenha descoberto
por meio da introspecção.
Toda
vez que a observação de alguém
é um exercício de processos secretos,
é útil, no treinamento para a tarefa de
entrevistar, ter em conta o gênero de dados que
podem ser esperados de cada fase da entrevista. Isso
pode ser ilustrado, se vocês o desejam, como "saber
o que alguém está buscando";
não obstante, hesito em ilustrá-lo dessa
forma, posto que qualquer um que pense em tais termos
corre o sério risco de crer que observa, de um
ponto isolado, as performances com as quais está
relacionado somente como observador, coisa que não
pode fazer o entrevistador. Não há dados
psiquiátricos que possam ser observados de uma
posição isolada por uma pessoa que não
esteja comprometida na operação. Todos
os dados psiquiátricos têm sua origem na
participação e na situação
que se está observando, ou em outras palavras,
por meio da observação participante. Assim,
em lugar de "saber o que alguém está
buscando", alguém deve estar atento
às possibilidades do futuro imediato da relação
na qual alguém está incluso. É
por isso que não é possível dizer:
"Eis aqui dezessete listas de fatos que podem
caracterizar as entrevistas. Memorizem todas elas e
sempre poderão saber exatamente o que esperar".
Tal coisa é absolutamente impossível.
O estado
de atenção não pode criar-se jamais
de maneira útil, somente em resposta a coisas
que podem ser comunicadas com precisão em palavras,
a não ser que a comunicação seja
de um caráter particularmente extraordinário.
Claro está que, se olho inesperadamente e com
os olhos desorbitados, me dirijo até à
porta e grito: "Fogo!", emprego uma palavra,
e o estado de atenção de quem escuta estará
bastante influenciado por tal comunicação.
Porém, isso é uma circunstância
excepcional, e ainda assim, apenas pode ser qualificado
de comunicação verbal. É
uma classe rara de advertência de um grande perigo,
pouco distinta do som de um grande gongo. Assim, não
é possível ensinar nada daquilo que se
deve esperar, nem do que se deve estar atento para não
perder nem um só fato importante. No lugar disso,
estou tratando de fomentar a organização
do pensamento, de tal maneira que inclua, nesse mesmo
sentido, as funções dos processos secretos,
um grande número dos quais não podem ser
formulados com exatidão.
Porém
quando digo que o psiquiatra deve estar bastante atento,
não quero sugerir que empregue essa vigência
para observar o paciente, a conduta do paciente,
o que disse o paciente etc. Pelo contrário,
deve ter consciência em todo momento do fato de
que essa é uma performance de duas pessoas,
na qual o comportamento do paciente e o que ele diz
se ajustam, pelo que o paciente sabe e é capaz,
ao que ele adivinha sobre o psiquiatra. De modo correspondente,
os comentários, perguntas, observações
etc., do entrevistador são efetivos até
o ponto em que ele está consciente da atitude
do paciente para com ele, e até onde é
consciente de tudo quanto até então é
sabido sobre os antecedentes do paciente, sua experiência
e a que classe de pessoa pertence. Assim, o psiquiatra,
até onde é possível, concentra
sua atenção nos processos que se produzem
entre ele e a outra pessoa, ou que compreendem a ambos,
e não em algo tão remoto como: "Que
faz e diz este meu paciente?" Contudo, incorpora
"comigo e a mim", então começa
a ter sentido.
SULLIVAN, Harry Stack. Estudios Clínicos
de Psiquiatría, Buenos Aires
Capítulo III
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