O
PLANEJAMENTO DA ENTREVISTA
Harry
Stack Sullivan
O
PAPEL CULTURAL DO PSIQUIATRA
Quero
me referir, neste artigo, aos aspectos peculiares da
definição, aplicáveis ao psiquiatra
ou a qualquer profissional que atue no campo geral da
psiquiatria, é o mesmo que dizer a um estudante
aplicado, digamos assim, sobre os aspectos práticos
da personalidade e do viver do ser humano.
Acredito que o que a sociedade ensina a uma pessoa sobre
a expectativa dela é de suma importância.
A pessoa que chega a uma consulta psiquiátrica
esperando um certo protetor que não se materializa,
provavelmente não voltará; mesmo assim,
não dirá coisas muito agradáveis
sobre o entrevistador se este, considerando que as coisas
esperadas pelo seu paciente são inadequadas,
não corresponde a essas esperanças e apresenta
ao cliente algo que ele considera "muito melhor".
Em outras palavras, o que se ensinam ao paciente esperar
é aquilo que deve conseguir, o quanto menos,
qualquer variação que se introduza deve
se separar claramente daquela, de uma maneira cuidadosamente
preparada. Para ilustrar isto, digamos que uma pessoa
se apresenta com a esperança de obter satisfação
pessoal. O psiquiatra pode considerar, ao contrário,
que seria melhor para o paciente aprender a ganhar a
vida de algum modo. Porém antes que se consiga
êxito em oferecer ao paciente sua ajuda para este
fim, deve prestar atenção ao fato de que
o paciente foi ao consultório para obter satisfação
e que o psiquiatra terá que atender seriamente
a sua expectativa se deseja que diminua seu desejo de
contentamento e se quer induzi-lo com a intenção
de despertar seu interesse em ganhar a vida. A definição
social ou cultural é muito importante nas primeiras
etapas de uma relação interpessoal; de
fato, é finalmente importante se uma das pessoas
interessadas se sobrepõe, pois que isso significa
que a relação não será direcionada
em sentido algum que tenha um significado verdadeiro.
Ocorrerá algo, porém a pessoa que se sobrepôs
à definição cultural da situação,
não saberá o que ocorreu no curso dos
acontecimentos, então, não se adaptará
particularmente a ele. O psiquiatra, ou qualquer outra
pessoa que veja um estranho supondo que descobrirá
o que ocorre com ele e que possivelmente poderá
ser-lhe útil, deve prestar considerável
atenção ao que tradicionalmente, na sociedade
informada é aceito como uma função
singular, em seu papel de especialista.
Permitam-me
mencionar algumas das maneiras em que o psiquiatra,
durante seu trabalho, ilustra esta definição
social. O especialista em psiquiatria deve ter, segundo
se espera dele, uma compreensão pouco comum do
campo das relações interpessoais, uma
compreensão extensa, maravilhosamente detalhada
ou as duas coisas de uma vez. Supõe-se que ele
estará, no mínimo, familiarizado com praticamente
tudo que as pessoas fazem em sua relação
mútua, e que saiba mais que seu paciente sobre
as relações interpessoais em qualquer
campo de interesse que possa ser discutido. Supõe-se
que possua uma compreensão pouco comum da técnica
da observação participante, que quando
fale com qualquer outra pessoa saiba de mais assuntos
que possa esperar-se de um mortal comum, razoavelmente
inteligente. Capte muito mais e esteja informado a respeito
do que ocorre em seus relacionamentos com os demais,
que também podem ser talentosos porém
não são especialistas. Espera-se que demonstre
sua habilidade na condução de sua relação
com o paciente, sobre o que muitos pacientes se enganam
mais de uma vez. Em outras palavras, sendo o psiquiatra
um especialista nas relações interpessoais,
não há nada de estranho que o paciente
chegue diante dele esperando que conduza as coisas de
tal modo que materialize os propósitos que levaram
o paciente ao consultório: é assegurar
que as vantagens e desvantagens da sua vida sejam corretamente
apreciadas e que suas dificuldades sejam suavizadas
para que possam converter-se em elementos remediáveis
e significativos de seu passado, ou que será
aconselhado, por exemplo, a se divorciar de sua esposa
no suposto caso que ela constitua realmente a dificuldade
do paciente ao invés de ser o seu passado. O
especialista em psiquiatria é considerado, supostamente,
pela definição cultural do que seja um
especialista e por rumores e crenças gerais sobre
a psiquiatria, perfeitamente capaz de conduzir com êxito
uma entrevista psiquiátrica.
Podemos dizer que: esta declaração significa
que a demonstração das habilidades na
entrevista psiquiátrica manifesta-se, como disse
certa vez Adolf Meyer, "aqui e agora"
durante a entrevista. Não se manifesta em qualquer
outro lugar como, por exemplo, no consultório
do médico que diz: "Você deve
consultar um psiquiatra e aconselho que procure fulano,
a quem considero um maravilhoso profissional."
Assim, talvez consiga que o paciente tome um ônibus
indo a um psiquiatra que, por sua vez, não faz
absolutamente nada para estabelecer uma relação
especialista-paciente, fator fundamental para o êxito
da consulta. O psiquiatra tem a obrigação
de demonstrar ao seu paciente os limites dos rumores
e crenças que prevalecem especialmente na classe
social à qual pertence o paciente, e que ele,
o especialista, o psiquiatra, é, pelo menos um
pouco do que se espera que ele seja.
O psiquiatra demonstra que faz honra ao papel que se
espera dele — naturalmente, até onde estas
esperanças tenham sentido comum e algum significado
— assim o paciente experimenta, no decorrer da
entrevista, algo que o impressione como a capacidade
do especialista para atendê-lo. Se nos detemos
a considerar as pessoas a quem chamamos "compreensivas"
— é dizer capazes de tratá-las de
uma maneira profissional — se observará
que todas elas demonstram um considerável respeito
para conosco. Conhecer uma pessoa assim pode ser realmente
um acontecimento; é quase um privilégio
tê-la ao nosso lado. Este respeito para com o
outro tem resultado impressionante quando uma parte
o experimenta, não somente adota uma forma geral
de respaldar o valor do companheiro, sorte que também
é revelada pela advertência de quaisquer
das severas sacudidas que alguém pode sofrer
durante uma desavença, assim como por certa tendência
a apresentar-se em auxílio de alguém naquelas
ocasiões nas quais nos sentiríamos muito
melhor se tivéssemos alguma informação
da qual precisamos, e assim por diante. Em outras palavras,
uma pessoa é bem orientada, primeiramente quando
é tratada como digna de ser acolhida, em segundo
lugar, quando tem clara consciência de seus distúrbios
e do seu valor pessoal, segurança etc., e é
sensível a eles enquanto se encontra na presença
do outro.
Assim, quando certa pergunta vai tocar num ponto sobre
o qual o paciente não se sente muito seguro ou
se mostra ansioso, o psiquiatra faz um pequeno movimento
preliminar, indicando que resultará numa pergunta
desagradável, porém absolutamente necessária
para obter informações precisas; em outras
palavras, brinda ao paciente com uma pequena advertência,
para prepará-lo. Às vezes pode dar-se
conta de que o paciente está ansioso por algo
que, ao psiquiatra, é a coisa mais natural do
mundo. Neste caso, o psiquiatra pode perguntar: "Isso
lhe parece pouco comum?" O paciente pode confirmar:
"Sim, na verdade me parece.", e o
psiquiatra replica: "Nossa! Jamais ouvi ninguém
dizer honestamente que não mencionasse isso."
Assim, o respeito para com a outra pessoa e para com
seu sentimento de segurança é o primeiro
elemento de averiguação nas relações
interpessoais que todo cliente buscará no entrevistador
empenhado em uma tarefa psiquiátrica ou quase
psiquiátrica. E se o cliente não encontra
isso de nada valerá a propaganda do médico,
por mais familiar que seja, para que o paciente se considere
numa situação favorável ou que
os resultados da entrevista lhe pareçam iluminadores.
DADOS
PERTINENTES E NÃO PERTINENTES —
Tanto a cultura como a ordem social — ou seja
o que é ensinado desde o nascimento — podem
servir de apoio ao psiquiatra ao dizer que, como especialista,
tem "direito" a certos dados pertinentes e
significativos referentes à pessoa que o consulta.
Dito de outra maneira, tais dados são necessários
pela suposição básica de que o
psiquiatra tem que compreender quem é o paciente
e de que maneira se produziram as coisas em sua vida.
Qualquer pessoa que "tenha direito" a algo
constitui, como é natural, uma referência
sumamente obscura a algo profundamente complicado. Porém
esta noção é tão prevalecente
que existem direitos inerentes e residentes relacionados
à pessoa, sua família, seu emprego e assim
infinitamente, que o paciente aceita por regra geral.
A ordem social é de tal natureza que, não
apenas alguém, em seu caráter de psiquiatra
indica essa premissa, o movimento opressor na personalidade
do paciente se inclina em direção à
seguinte conclusão: "Claro que o doutor
tem todo direito a isso! Há de ter, sim há
de encontrar algum sentido neste meu problema!"
Deste modo, o psiquiatra não entra em discussões
referentes a se está "bem" ou se está
"mal" que lhe proporcionem os dados que necessita,
nem em debates relacionados com a "correção"
de que ele ou ouça isto ou aquilo ou a "necessidade"
de que o paciente lhe revele tal e qual coisa. Limita-se
a supor que os dados têm que ser proporcionados
a fim de encontrar um sentido em todos os obscuros processos
do viver; evita toda discussão prolongada com
seu paciente a respeito das origens de ou das razões
supostas, apresentando-as como uma espécie de
dogma que tem de ser necessariamente aceito se o trabalho
tem de progredir ou ter algum sentido. Claro que se
o paciente não aceita esta suposição,
e se empenha em saber sobre que assunto está
falando o psiquiatra, eu, no meu caso, lhe digo, ainda
que não me agrade, devido à necessidade
de tantas palavras.
Deste modo, o especialista insiste em conseguir o que
tem de saber destacando que, sem esta informação,
é impossível adivinhar a qual classe de
pessoa pertence seu paciente ou saber o que o aflige.
Com certa alteração na frase, isto é
aplicável também aos entrevistadores,
com o propósito de decidir se uma pessoa deve
ou não ser empregada, deve ou não ser
despedida, pode ou não realizar tal trabalho
e assim sucessivamente. O especialista tem direito a
que lhe forneçam dados pertinentes e significativos
portanto empenha-se em consegui-los. Se encontrar grandes
dificuldades, explica a seu cliente o quão necessárias
são essas informações e quando
esse ponto fica claro, verifica por que não é
possível consegui-las.
Algumas vezes se revelam dificuldades do viver ou ao
tratar este ponto. Por exemplo, nos estados paranóicos
se registra o mais hermético segredo sobre toda
classe de coisas que, a meu ver, não interessam
a ninguém a não ser ao paciente. É
possível que o psiquiatra, enquanto intera-se
de diversas coisas que necessita saber, tropece nessas
zonas secretas. Se isso ocorre, pode dizer, por exemplo:
"É que você supõe que tenho
que entender essa sua dificuldade com seu vizinho sem
me passar nenhuma informação."
É possível que ao ouvir isso o paciente
se aborreça momentaneamente, por estar diante
de um dilema, porque, no ponto de vista dele, o psiquiatra
deveria na realidade ser capaz de fazer exatamente isso.
Não obstante, a pergunta, colocada dessa forma,
tem um sentido bastante peculiar. Então o psiquiatra
indaga: "Trata-se de algum segredo que você
não deseja confessar?", é possível
que o cliente se sinta indignado e responda algo assim:
"É que, na verdade, não acredito
que estas coisas melhorem através de conversas."
Certo: isso contribui para aclarar que o psiquiatra
não pode ser útil ao paciente, e assim
deve expressar-se sem ambigüidades. Dessa maneira
se evidencia que há alguns segredos notáveis
na vida dessa pessoa, que são desconhecidos até
por ela mesma.
O entrevistador tem direito também a exercitar
sua habilidade para diminuir as trivialidades, impertinências,
brincadeiras e repetição de coisas que
já foram ditas. Talvez seja mais difícil
para o jovem entrevistador demonstrar sua habilidade
neste sentido, do que insistir para conseguir as informações
necessárias. Porém em se tratando de um
especialista em relações interpessoais
é bastante provável, por várias
razões, que duvide que o paciente tenha muita
vida pela frente, e portanto que deseja empregá-la
da melhor maneira possível. É profundamente
impressionante para muitos, num intervalo de lucidez
depois de sair do consultório, dar-se conta de
que alguém o ligou a algo que tem sentido, e
que cada vez que começava a dizer alguma coisa
que já dissera anteriormente, o profissional
o interrompia para dizer: "Sim, sim. Agora
vamos investigar isto e aquilo." Dizendo de
outra maneira, o especialista não permite que
pessoas lhe digam coisas sem sentido, que somente Deus
poderia adivinhar como ocorrem estas conversas. Dessa
maneira, desde sua primeira reunião com o paciente,
até o final ou a interrupção de
uma entrevista ou série de entrevistas, o psiquiatra
se conduz como um verdadeiro especialista em relações
interpessoais, que está genuinamente interessado
nos problemas de seu paciente. Tem extremo cuidado em
obter todos os detalhes necessários para evitar
incompreensões ou erros que o paciente informa
sem intenção, apesar do que se mostra
cauteloso diante de qualquer alento tendente a um detalhe
repetido, circunstancial ou inconsciente, na informação
ou comentário do paciente. Em uma entrevista
psiquiátrica não há tempo a perder.
Se o psiquiatra percebe que o paciente está repetindo
coisas que já havia dito anteriormente, ocupando-se
de detalhes que não têm o menor valor ilustrativo
ou desejando falar inconseqüentemente sobre uma
pessoa remotamente relacionada com o problema que se
examina, pode, porém de forma não brusca,
desencorajar tais movimentos, tolerando um mínimo
de tempo perdido, pois sabe perfeitamente que há
muito, muito mesmo a ser feito. Na realidade, essa atitude
conduz a uma benevolência para com o paciente,
pois lhe comunica que psiquiatra parece saber o que
está fazendo e com tal esperança em sua
mente observará fielmente o que diz e faz o psiquiatra.
O psiquiatra, mesmo assim, priva-se da satisfação
de qualquer curiosidade sobre as questões nas
quais não existe razão alguma para investigar.
Priva-se disso de uma maneira passiva, não
perguntando, por exemplo, que prazeres anteriores a
pessoa aprendeu em suas relações com sua
esposa ou noiva, quando isso não é importante;
além disso priva-se ativamente, ao interromper
os relatos quando já ouviu o que tem importância,
ainda que tenha certeza de que seria interessantíssimo
escutar o resto. Por outro lado, o paciente aprecia
profundamente essa atitude. Em primeiro lugar evita
o provável desgosto de entrar em detalhes que
o envergonham. Em segundo lugar, se dá conta,
quando sozinho ou depois de deixar o consultório
que "este doutor estava tratando de descobrir
o que era que me afligia. Não estava se divertindo
ou se entretendo." Tal descoberta contribui
de forma notável para dar maior subsistência
ao benefício que se deseja obter em uma entrevista
psiquiátrica. Os pacientes se sentem imensamente
satisfeitos ao saber que o médico pode pôr
fim a certas questões desde que consiga informações
necessárias e que a partir daí possa transferir
seu interesse para qualquer outra coisa que considere
importante.
TRIVIALIDADES
PSIQUIÁTRICAS —
Entretanto, há outra coisa que o entrevistador
deverá evitar que é todo comentário
sem sentido e tudo que tente obscurecer os problemas.
Ao mesmo tempo, evita dar seu tácito consentimento,
não emitindo comentário, às decepções
ou lamentáveis erros expressos pelo paciente.
De repente nos damos conta de que muitos comentários
são desnecessários. Muitas questões
culturais e trivialidades psiquiátricas são
expressas facilmente, porém desafiam a qualquer
um que determine o seu significado. Por exemplo: as
pessoas se referem com freqüência à
"fixação materna",
e quando isso ocorre e é dito pelo psiquiatra
durante a entrevista, me parece que ele merece, no mínimo,
uns bons pontapés. Criei-me na escola psicanalítica
e durante meus estudos sobre os esquizofrênicos
— somente homens, desde que descobri que não
me era possível estudar mulheres esquizofrênicas
sem me confundir mais do que elas — descobri muitas
fixações desta espécie. Ou seja:
escutei um número de relatos sobre as relações
das pessoas com suas mães e esses relatos sempre
foram acompanhados por uma riqueza de detalhes que faziam
dessas relações algo que jamais poderia
ser apropriado e significativamente condensado com o
rótulo de "fixação materna".
Muito menos fazer sentido para aqueles pacientes que
observavam as suas mães de muitas maneiras, tanto
devastadoras como maravilhosas. Dito de outro modo:
a "fixação materna" pode ser
uma grandiosa verdade abstrata, útil para as
meditações privativas da psiquiatria,
porém para a pessoa que sofre de "fixação
materna", o termo está quase tão
desprovido de sentido e é quase tão tolo
como qualquer outro em que eu pudesse pensar. Assim
os psiquiatras tratam de evitar os comentários
sem sentido e as trivialidades psiquiátricas
que servem de obstáculo tanto para a obtenção
de informações pelo psiquiatra como pelo
paciente e se limitam a dar a este último uma
vaga sensação de que: "Fui muito
estúpido!... Está claro que isto é
assim, porém não havia me ocorrido!"
Em situação semelhante não há
nada simples e claro no que disse o psiquiatra; só
fez obscurecer o problema.
Assim,
até onde é possível — e todos
nós fracassamos às vezes quando nos referimos
a algum de nossos interesses particulares — o
psiquiatra se recorda que o papel que tem que desempenhar
é o de um especialista. Tenta manter-se nos limites
desse papel, por muitos culs-de-sac que o paciente
apresente; se sente um interesse pela entrevista que
não seja de uma pessoa que está empenhada
em um trabalho difícil, e na mais difícil
de todas as tarefas, ou seja a de compreender quem é
esta pessoa, o que almeja e o que pode fazer para obter
um resultado satisfatório e duradouro, reconhece
isso e lamenta profundamente. Do início ao fim,
e até onde é humanamente possível,
o psiquiatra trata de evitar ver-se complicado como
pessoa — ainda que seja uma pessoa muito querida
e maravilhosa — e se em sua missão de especialista,
pura e exclusivamente um especialista, ou seja se mantém
em um papel de alguém que, teoricamente e de
fato, trata seus pacientes unicamente porque ele (o
psiquiatra) tem a vantagem de uma certa educação
original e única, assim como uma experiência
que o capacite para ajudá-los.
Em tudo isso, o psiquiatra evita, com o maior cuidado,
todo procedimento que está destinado a impressionar
seu paciente, a demonstrar que o psiquiatra é
clarividente ou que possui onisciência. O psiquiatra,
como qualquer outro especialista, deve ter desenvolvido
uma certa humildade, de maneira que não se sinta
impelido a trabalhar como se soubesse tudo e sua mente
penetrasse todos com um olhar. É preciso que
sintam que a tarefa do entrevistador é muito
difícil, isto é precisamente o que aconselho
aos jovens psiquiatras. Porque, certamente, a tarefa
é, sem dúvida, bastante árdua.
OS
OBSTÁCULOS CULTURAIS
NO TRABALHO DO PSIQUIATRA
Nas
relações psiquiatra-paciente, algumas
das grandes dificuldades que o psiquiatra encontra por
ser um especialista tem sua origem no que poderíamos
chamar de elementos "antipsiquiátricos"
da cultura propriamente dita, ou seja, elementos culturais
que fazem com que o desempenho durante a perícia
psiquiátrica seja muito mais difícil do
que em outros campos da atividade humana. Sob este tópico
eu poderia discutir um grande número de atitudes
culturais que estão se destacando notoriamente
através da história, porém tentarei
somente generalizar algumas das que atingem constantemente
o especialista em psiquiatria, da mesma maneira que
tem atingido os povos da Europa Ocidental. Em primeiro
lugar, para nos tornar um especialista em psiquiatria
nos aflige o fato que ensinam a todos os seres humanos
que não deveriam necessitar de ajuda, por isso
envergonham-se cada vez que precisam ou experimentam
a sensação de que são tolos ao
buscar ou esperar que alguém os ajude. Ao mesmo
tempo, recorrem a ajuda psiquiátrica com esperanças
sobre o que obterão, talvez porque isso seja
necessário para recuperar a auto-estima.
Em segundo lugar — isso está ligado à
herança cultural e é amplamente difundido
— cremos que as pessoas devam conhecer-se a si
mesmas, saber que uma ou outra coisa fixa chamada "natureza
humana" é na realidade, distinguir
entre o certo e o errado, o bom e o mau e ser capazes
de descobrir nos demais, tudo quanto se refira a essas
importantes questões. Em terceiro lugar, ensinam
às pessoas que devem ser regidas pela lógica
ou ter sentido comum. Ainda, se não
é possível demonstrar que possui um sentido
comum particularmente eficaz, pelo menos que deve ter
bons instintos naturais e boa intuição,
que deverão prevalecer quando se trata de escolher
a maneira correta de fazer e pensar em si e nos demais.
Outra idéia que está arraigada na personalidade
é que as pessoas que não encontram possibilidades
de progresso, nem conseguem superar as limitações
impostas pelo seu passado, pelos infortúnios
pessoais ou pelos erros cometidos deveriam envergonhar-se;
ou então se não conseguem superar-se deveriam
respaldar-se em um grande número de explicações
que justifiquem que apesar do seu valor e da sua capacidade
não conseguem superar seus infortúnios.
Finalmente, generalizando estas questões, pessoas
com pontos de vista antipsiquiátrico podem afirmar
que: todos deveriam ser independentes. As pessoas deveriam
ouvir a opinião de outras sobre como agir a respeito
de determinados assuntos ou sobre como viver. Foi a
noção culturalmente reforçada de
independência que fez com que a história
de Robinson Crusoé fosse tão interessante
no meio jovem, e uma das demonstrações
mais recentes e aqui aparece contidas num livro que
fixa como ideal de maturidade humana que as pessoas
só devem ser dependentes quando estão
doentes, mas espero ter deixado claro que esta é
uma idéia um tanto quanto duvidosa.
A UTILIZAÇÃO
DE MÉTODOS PARA
SUPERAR OS OBSTÁCULOS PESSOAIS
O
psiquiatra enfrenta inúmeras dificuldades para
se tornar um especialista, não somente devido
às atitudes antipsiquiátricas da cultura
como também devido às informações
técnicas inadequadas que recebe. Na atual fase
dos conhecimentos psiquiátricos, isso é
inevitável pelo simples fato de que não
compreendemos suficientemente os processos que integram
as relações interpessoais para que consigamos
adequá-las a todos os problemas que surgem no
transcurso de nossa formação como psiquiatras.
Além disso, há em todos os casos uma certa
dose de impedimento ou desvantagem que surge da ignorância,
por parte da psiquiatria e dos fatores interpessoais,
ignorância que estorva ou impede a participação
do especialista em certas fases das relações
médico-paciente. Assim, isto pode ser um obstáculo
recorrente em quase todas as relações
médico-paciente ou praticamente em todas elas,
nos casos em que uma parte presume seriamente que a
ignorância dos fatores interpessoais pertence
principalmente a compreensão de si mesmo pelo
psiquiatra. Ou o impedimento pode ainda variar de uma
relação médico-paciente para outra,
em cujo caso o obstáculo pertence principalmente
às características de pacientes singulares
que o psiquiatra, devido a sua formação
e habilidades pessoais, não pode observar.
Nenhum de nós — com razoável humildade
e respeito ao limite da psiquiatria e de nossa formação
pessoal — pode esperar que nos seja possível
evitar esses impedimentos. Em conseqüência,
objetivando reduzir as sérias dificuldades emanadas
do fato de que ignoramos ou passamos por cima dos processos
interpessoais nas relações médico-paciente,
convém fazer uso, até convertê-lo
em hábito, de um procedimento mais ou menos metódico
para desenvolver essas relações com os
pacientes. Contudo, não é possível
dizer a todos os psiquiatras qual procedimento se adaptará
de forma ideal a eles, há algumas linhas gerais
que provavelmente seriam úteis a quase todos
os entrevistadores. Portanto quero discutir um certo
procedimento ou diagrama no qual se pode utilizar métodos
para realizar as entrevistas psiquiátricas. Seguindo
moderadamente esse procedimento, o psiquiatra economiza
tempo e demonstra sua habilidade.
A entrevista psiquiátrica pode ser composta por
uma série de etapas e ainda que sejam hipotéticas,
novelescas, abstratas e artificiais podem ser de grande
utilidade para o psiquiatra se as tem ordenadas em sua
mente para dispor de seu tempo com o paciente. Mas o
que é mais importante ainda, creio que são
completamente necessárias para alcançar
o propósito de uma intensa relação
desta classe. Essas etapas são: primeiro, o começo
formal; segundo, o reconhecimento; terceiro, a investigação
ou interrogatório detalhado; e quarto, a conclusão.
Referir-me-ei a estas etapas com riqueza de detalhes
mais adiante, e para o momento buscarei, em breves palavras,
o que quero dizer sobre elas. O princípio inclui
a recepção formal da pessoa que vem a
ser entrevistada é um interrogatório referente
às circunstâncias da sua vida. Deverá
incluir uma breve, porém, estudada referência
pelo psiquiatra sobre qualquer informação
que já tenha obtido. Isto é importante
não só para promover ao paciente uma sensação
de confiança por meio da franqueza do entrevistador,
mas também para proporcionar uma oportunidade
ao paciente de corrigir qualquer informação
presumida que o psiquiatra pudesse ter colhido de outra
fonte, se fosse necessário. Finalmente, deve
estabelecer um motivo adequado para a conferência,
é dizer, que o psiquiatra deve conseguir uma
justificativa adequada para o emprego de seu conhecimento.
Durante toda esta etapa da entrevista, o psiquiatra
deve recordar que a pessoa que vai consultá-lo
é uma estranha, ainda que em outras circunstâncias
possa ser um velho amigo seu. Assim, o psiquiatra pode
não saber que impressão causará
a este estranho, pois não conhece absolutamente
nada sobre seus antecedentes, como dos elementos práticos
que podem ser muito poderosos e produzir influências
sobre suas impressões. Para tanto o psiquiatra
tem que estar alerta para observar a impressão
que ele e alguns de seus atos provocam, e ao mesmo tempo
saber de que forma o mesmo é afetado por certas
coisas que o paciente pode dizer ou fazer. O entrevistador
deve proceder de modo a não criar nenhuma situação
embaraçosa nesta fase, pois o início da
entrevista pode acelerar o resultado que se busca, ou
fazer com que esse resultado seja praticamente inalcançável.
O segundo passo do procedimento, o reconhecimento,
que deve iniciar-se o mais "naturalmente"
possível, consiste em obter um momento dos grandes
traços da história social ou pessoal do
paciente. Nesta etapa, o entrevistador se preocupa de
obter alguma noção da identidade da pessoa:
quem é, como se tornou esta pessoa que vem consultar-se.
Assim o entrevistador formula perguntas convencionais
sobre a idade, os irmãos, data do casamento e
assim sucessivamente; não procura desdobrar uma
história psiquiátrica; ao contrário,
trata de orientar-se sobre certas probabilidades básicas.
A habilidade do entrevistador, no que se refere a obter
e interpretar essa história, pode determinar
a facilidade ou dificuldade da investigação
ou do próximo interrogatório detalhado.
Além disso, o tempo aplicado para alcançar
o propósito da entrevista, ou série de
entrevistas, pode depender da exatidão com que
se obtém a história mencionada.
A etapa seguinte, o interrogatório detalhado,
depende de maneira considerável, ainda que não
exclusivamente, do propósito ostensivo da entrevista.
A maior parte destas conferências versará
sobre os princípios e técnicas do interrogatório
detalhado ou seja sobre alguns dos detalhes que
compõem a quase ilimitada variedade de sutilezas
e complexidades dessa extensa indagação
sobre a vida de outras pessoas e de seus problemas.
Para o momento, direi apenas que conforme o entrevistador
se orienta pelas suas perguntas, evidenciando o propósito
da entrevista, jamais realiza uma boa entrevista se
esquecer seu objetivo: permitir que um especialista
em relações humanas contribua para o êxito
da vida de outra pessoa.
A
quarta etapa da entrevista, neste abstrato programa
particular é, o sentido da finalização,
ou da interrupção da
entrevista psiquiátrica. Ao dizer finalização,
quero dar a entender que o entrevistador não
espera rever seu cliente. Terminou. E por interrupção
quero dizer que o entrevistador já viu seu cliente
neste dia e o verá novamente no dia seguinte
em uma hora marcada. Se a entrevista é interrompida,
o psiquiatra deve dar uma prescrição ao
paciente para este intervalo, como preparação
para a seção seguinte. Por exemplo, pode
sugerir-lhe algo que o paciente deverá recordar.
Se a entrevista terminou, o entrevistador deve formular
uma declaração final. Em geral, o propósito
mais importante que se pode alcançar, seja ao
terminar uma entrevista ou ao interrompê-la por
qualquer período de tempo, é a consolidação
do que se alcançou, resultando em algum benefício
duradouro para o entrevistado.
SULLIVAN, Harry Stack. Estudios Clínicos
de Psiquiatría, Buenos Aires
Capítulo II
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