“A
IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE”
“O
GRANDE ENCONTRO”
Arquivo
do Conselho Regional de Medicina do Paraná.
10(40):190-207, 1993
Alzeli Bassetti – Jornalista de Curitiba –
PR
Trabalho classificado em 1º lugar no Concurso “Melhor
Monografia Sobre Ética Médica –
1993 – A importância da Relação
Médico-Paciente.” Promoção
do Conselho Regional de Medicina do Paraná.
APRESENTAÇÃO
Ao
abordar o tema “Importância do relacionamento
médico-paciente”, faz-se, na verdade, uma
inserção na questão maior do próprio
relacionamento humano. Lamentavelmente, este relacionamento
vem sofrendo desgaste na mesma proporção
em que se observa o avanço das descobertas científicas.
Tanto mais progride o homem em sua capacidade ilimitada
de racionalizar e criar, tanto mais se tem mostrado
impotente para estabelecer firmes relações
de reciprocidade. Assim o progresso que vem sistematicamente
acontecendo em todas as áreas da ciência,
mercê da criatividade humana, vem colaborando
para um distanciamento entre os homens, quando o ideal
— se se considera que o objetivo primordial da
ciência é colocar-se a serviço da
humanidade — seria um desenvolvimento científico
caminhando “pari passu” com o aprimoramento
das relações do homem consigo próprio,
dele com a natureza e dele com seus semelhantes.
Concebido
a partir desta premissa, o progresso científico
seria a força motriz e nutriz da humanidade na
busca que ela enceta para obter a felicidade terrena.
De que valem as mais variadas descobertas, desde as
mais simples à mais sofisticada, se não
são voltadas para minorar o sofrimento humano?
De que valem os mais modernos equipamentos se não
cumprem a função de fazer brotar no âmago
dos corações humanos uma réstia
de felicidade e harmonia? É, portanto, inconcebível
um mundo em que o conhecimento humano e a alta tecnologia
se estabeleçam em detrimento da condição
humana.
Ao
usufruir o privilégio único de um contato
físico direto com o homem que está a sofrer,
o médico sente mais profundamente o impacto desta
distorção. Também ele se sente
impactado, isolado, solitário. A necessidade
e a oportunidade para firmar um relacionamento com o
paciente que o procura nas mesmas condições
psicológicas obrigam-no a sublimar o enjaulamento.
E mais: compelem-no à iniciativa de romper as
amarras que aprisionam o paciente. Dupla tarefa, árdua,
porém inevitável. Sofrida e conseqüentemente
gratificante. São dois prisioneiros de um “stress”
originário do sistema vigente no mundo e na aldeia
em que vivem. São dois reféns da mesma
ansiedade e uma mesma angústia, de um mesmo sentimento
de impotência.
O “leitmotiv”
que os coloca frente a frente é o sofrimento
do paciente, quando ele se torna insuportável.
O pedido por socorro sensibiliza o médico, que,
no relacionamento ideal, consegue romper suas próprias
barreiras e sair de si mesmo. Vai mais além:
munido de amplo conhecimento e solidariedade, transporta-se
para o paciente, entendendo o sofrimento deste. Convoca-o
a uma relação de reciprocidade para que
se derrubem as barreiras comuns e aquelas impostas pelo
estado de enfermidade que afligem o paciente.
Estabelecido
o diálogo livre, sincero e fraternal, ocorre
um grande encontro de consciências. São
duas almas em que um solicita e o outro doa. E ambos
saem vitoriosos perante os males que os ameaçavam.
Uma vitória que é, em suma, agregada às
conquistas da sociedade humana.
Este
trabalho se propõe a resgatar, através
da análise dos tipos de relacionamento médico-paciente
mais comuns e das etapas implícitas em cada relacionamento,
a otimização desse vínculo, imprescindível
ao objetivo maior de livrar o paciente do mal que o
molesta. Ou de muni-lo de coragem estóica para
enfrentar a fase terminal da doença. Busca, também,
realçar que do relacionamento citado é
possível resultar um encontro de comunicação
construtiva, e, enfim, se converter num ponto a mais
para o aprimoramento das relações humanas.
A dor, de todos os matizes e circunstâncias, pode
se transformar em alavanca ao crescimento interior de
quem a suporta e de quem se propõe debelá-la.
Fraternidade e solidariedade, na alegria e na dor, outra
não foi a pedra de toque para o relacionamento
ideal à humanidade, concebido pelo Criador.
Daí
a importância precípua de que o relacionamento
médico-paciente se reveste.
DESENVOLVIMENTO
a)
Conceito clássico e específico de relacionamento.
Num
sentido estrito, relacionamento é o ato de efeito
de relacionar-se. É a capacidade, em maior ou
menor grau, de comunicar-se ou conviver com os seus
semelhantes. Num conceito mais amplo, é a ligação
de amizade, afetiva, profissional, condicionada por
uma série de atitudes recíprocas.
Assim,
qualquer tipo de relacionamento não pode prescindir
de um vínculo, que pode resultar positivo ou
negativo. Por vínculo, entenda-se o que pode
ser atado, firmado, compromissado, cuja função
é impedir um rompimento de coisas, pessoas ou
grupos sociais. É característica fundamental
da condição humana, a de estar capacitado
para se relacionar com o cosmos e ser o motor da história.
O relacionamento
médico-paciente ocorre em circunstâncias
específicas. Está no cerne da Medicina
a ligação essencial com o humano. Há
nela todo um resumo da magnífica experiência
humana: sofrimento, alegria, dor, cura, fé, esperança,
caridade, vida e morte. E é o primeiro que faz
a ligação entre o paciente afligido e
o médico que pode aliviá-lo. Na evolução
da vida, após o Homem emerge o médico.
Ao lidar com a doença, ele tenta debelar aquela
que antecedeu a própria Medicina. Tem diante
de si um paciente sofredor buscando conforto, compreensão
e cura. Não é um cidadão comum.
Trata-se de alguém física, orgânica,
afetiva e psicologicamente combalido. Que está
doente por inteiro e não parcialmente, restrito
a um único mal. E é este estado geral
de sofrimento que o impele a solicitar ajuda médica
e o converte numa pessoa humana enferma, na maioria
das vezes portadora de uma regressão à
infância.
Hospitais,
medicamentos, operações ou procedimentos
cirúrgicos, técnicas de diagnóstico,
enfermagem, formação, ensino médico
e laboratórios devem estar voltados para esta
pessoa humana, em complementação ao relacionamento
que ela estabelece com o médico. Este, ao contatar
com o paciente, precisa ter em mente esta dimensão
total. Diante dele não estão somente as
multifaces da doença, e sim todos os graus de
alienação a que o paciente está
subordinado por sua inserção na sociedade
contemporânea. (Estão o paciente e todas
as suas circunstâncias históricas.) O processo
do relacionamento médico-paciente se constitui
do interior de um para o interior do outro. Somente
assim a margem de sofrimento se reduz.
Para
que esta interpenetração ocorra, propiciando
uma profunda identificação, cabe ao médico
reverter em aceitação e esperança,
a recusa do paciente em se submeter ao sofrimento. Desta
forma, o relacionamento se assemelha a uma construção,
que não pode prescindir da colaboração
de ambos.
Todas
essas características e implicações,
fazem com que o relacionamento médico-paciente
se destaque entre os demais. O fato de ter como ponto
de encontro o sofrimento, e ser este o elo entre a humanidade
e o médico, de ter como objetivo maior a preservação
da vida e de lutar por transformá-la em existência,
o distingue sobremaneira.
b)
Conceito clássico e contemporâneo de médico.
O
vocábulo latino “medicu” define aquele
que é diplomado em Medicina e a exerce. Designa
também aquele que pode restabelecer a saúde
física e moral. Os romanos costumavam dizer que
“o tempo é o grande médico”.
E a história narra dois outros tipos que se incluem
nesta classificação: o médico espiritual,
confessor e orientador moral, e o médico feiticeiro,
que, nas tribos indígenas, especializou-se na
arte de curar doentes, aplicando-lhes práticas
mágicas, não raro acrescidas de medicações
empíricas e rudimentares. Em Lucas, o médico
do Evangelho, encontra-se a primeira advertência:
“Médico, cura-te a ti mesmo”. Como
irá o médico curar seus pacientes sem
previamente ter o melhor conhecimento possível
de si mesmo? Como irá ele assumir “in totum”
a pessoa humana enferma se é para si mesmo um
desconhecido, se não conseguiu romper as próprias
barreiras, se não está consciente de suas
limitações e resta prisioneiro da onipotência
a que o “status” de médico, numa
sociedade também enferma, o condiciona?
Não
é o médico um ser absoluto, como também
não é infalível o próprio
conhecimento científico. O médico é
também um ser histórico, e mesmo quando
ele procura absorver o sofrimento do paciente, não
se despoja nem foge dessa realidade. A doença
incurável e a morte inevitável testam
constantemente sua capacidade de resignar-se. Ele sabe
não ser possuidor de todas as soluções,
mas também está ciente de não poder
se desvincular dos problemas. Deste antagonismo, vivenciado
diuturnamente, resta sempre o consolo que pode proporcionar
ao paciente. Foi Northnagel, professor de Clínica
Médica em Viena, quem melhor retratou este conflito
interno:
“O
médico raramente cura, muitas vezes alivia, mas
sempre consola.”
Porém,
para que se viabilize este consolo, há que criar
condições ideais, que extrapolam o conceito
clássico de médico. O clínico Régenis
Bading Prochmann, em seu “A visão do Médico”
coloca:
“Consciente
ou inconscientemente, a abordagem médica implica
sempre em envolvimento. É preciso assumir o todo
do doente, cada doente, todos os doentes.”
Esse
envolvimento, inevitável e inadiável,
ocorre no relacionamento médico-paciente, a cada
pessoa humana, cada paciente. Dá-se, então,
um processo interligado: o conhecimento do médico
aperfeiçoa o do paciente e ambos lutam para debelar
a doença.
Simultaneamente,
mestre e aprendiz, o médico ao reconhecer o paciente
como sujeito, permuta seu conhecimento científico
e sua experiência com o novo que cada paciente
lhe traz. Há que aprender a relação
de simultaneidade existente entre o indivíduo
e o ser paciente. Há que impedir a projeção
de suas próprias angústias. Há
que traduzir para si todo o complexo do sofrimento desse
paciente e renovar-se através de cada um deles.
Há que promover uma forma particular, única,
de comunicação com cada paciente, uma
maneira intransferível de estabelecer o diálogo.
Há que adquirir o máximo de consciência
de si, do paciente, de cada paciente e de todos os pacientes.
Há que estabelecer sempre e indefinidamente um
relacionamento por excelência humanizado, abster-se
da dominação, impedir a dependência
emocional do paciente. Há que, ao mesmo tempo
em que combate a doença, lutar contra o sofrimento
causado por ela. Há que colaborar para que da
comunicação estabelecida entre ele e cada
paciente, este passe mais a existir que viver. Enfim,
há que buscar incessantemente o aprofundamento
da condição humana, até às
últimas conseqüências. Em meio à
tendência da maioria dos pacientes, culturalmente
condicionada, dele exigir condições divinizadas.
É
oportuno recordar as palavras de Walter Benevides ele
próprio médico, nascido em 1908 e falecido
em 1981, presentes em sua obra “Visitas de Médico”.
“Quem
é bom médico? Não é necessariamente
aquele que cura, nem muito menos aquele que sabe. Bom
médico é aquele em quem o paciente confia.
Assim, o bom médico é charlatão,
pois, além do mais, ele resolve tão bem
ou melhor do que qualquer doutor os casos de cura espontânea
(que ocupam pelo menos cinqüenta por cento da clínica),
como atende, ainda em igualdade de condições,
os incuráveis.”
O médico
pode-se dizer, representa, a própria síntese
da humanidade. É a ele que convergem os conhecimentos
científicos, os aspectos mitológicos do
inconsciente coletivo, o sofrimento humano, as problemáticas
políticas, econômicas e sociais, a tristeza
e a alegria do mundo. A ele não é dado
desligar-se desta realidade, mesmo quando, em vão,
tenta recorrer ao isolamento, refugiando-se num mundo
somente seu. Entre as facetas da habilidade humana necessária
ao cultivo de um bom médico, estão os
princípios morais e éticos, o poder de
atenção e priorização ao
paciente, sem interposição de si próprio.
A doença, muitas vezes, conta com seus segredos,
através de um parêntese causal. O médico
deve ter em mente que o paciente deseja ser tratado
como um ser humano igual, quer ser mantido razoavelmente
informado, teme o abandono ou a negligência. E
nunca pode ser visto como um ser isolado, desenraizado:
ele é sempre o paciente, inserido na família,
na comunidade, no universo.
Há
oito séculos, Moses ben Maimon (Maimonides) compunha
a oração com os requisitos que devem caracterizar
o médico:
“Dai-me
a oportunidade de melhorar e aprimorar minha prática,
uma vez que não há limites para o conhecimento.
Ajudai-me a corrigir e a suprir as falhas da minha formação,
na medida em que o alcance da ciência e seu horizonte
se ampliam dia a dia. Dai-me coragem de perceber meus
erros diários para que amanhã eu seja
capaz de ver e compreender de forma mais iluminada o
que eu não pude compreender nas foscas luzes
de ontem.”
c)
Conceito clássico e contemporâneo de paciente.
O
latim “patiente” define a pessoa que padece,
que se encontra em sofrimento pertinaz, acometida de
um mal. A nomenclatura médica costuma conceituar
como “doente” aquele que não se encontra
em condições de saúde e sanidade
ideais e adota o termo “paciente” para o
doente que está sob cuidados médicos.
Para outros mais, “doente” é aquele
acometido de um mal restrito, conforme antiga visão
do fenômeno, e “paciente” é
aquele que tem comprometido seu estado geral. Na linguagem
popular, ambos são tidos como sinônimos.
A sutileza,
porém, não mascara a realidade. Na filosofia,
paciente é aquele que sofre ou é objeto
de uma ação. Gramaticalmente, é
aquele que recebe a ação praticada por
um agente. Já o latim popular “dolente”
evoluiu para aquele que tem doença, que está
enfermo, fraco, achacadiço. E estende o conceito
para aquele que sofre mal moral. Todavia, todas essas
definições e outras mais existentes não
se contradizem entre si e caracterizam, segundo conceito
atual, a pessoa humana, cuja característica circunstancial
mais importante é a de não desfrutar de
condições plenas de saúde.
Dizia
Louis Ramon, um dos maiores clínicos de todos
os tempos, que: “paciente é a unidade e
não um sistema ou um aparelho que, ao se detectar
nele uma peça rompida, troca-se por outra e basta.”
O mestre
francês resume, com essa colocação,
a visão ideal e complexa que o médico
dispôs naquele ano que, em desespero, por ele
procura. Se, por um lado, Ramon alertava sobre a temeridade
de se considerar um paciente fragmentado em órgãos,
despojado de inter-relação e interação,
por outro existe o “canto de sereias” da
possibilidade de, num outro extremo, o médico
incorrer na enganosa visão em cadeia, isto é,
como mais uma sucessão de pacientes.
Também
aqui, cada indivíduo, cada paciente, cada história,
cada tipo de atendimento, cada relacionamento. Não
se trata de um doente e sim de uma pessoa humana que
está e se sente doente, que tem uma disfunção
causadora de sofrimento, e que é portadora de
uma personalidade específica na reação
a essa disfunção. Cada paciente dispõe
de uma limitada teoria pessoal e particular sobre a
sua doença, desconhece os agentes causadores
dela, teme que a extensão do mal que o acomete
possa incapacitá-lo ou levá-lo à
morte. Mesmo os pacientes de nível cultural acima
da média são associados por estes temores
e também reagem a eles no plano intelectual e
emocional. Se enfermidade e morte são contingências
sempre presentes nas perspectivas futuras de cada ser
humano, o aparecimento de sintomas reaviva o medo na
mente do doente, que não raro passa a produzir
fantasias conscientes ou inconscientes, de conteúdo
ameaçador à sua integridade física
e mental. Como agravante, este medo o projeta de volta
à infância, numa regressão, que,
ao mesmo tempo em que faz retomar atitudes desta fase,
também lhe reacende antigas sensações
e emoções de raiva, insegurança
e rebeldia ao sofrimento. O racional é subjugado
pelo emocional e a disfunção passa a ser
interpretada de forma mais primitiva que lógica.
Quando
o paciente procura o médico, traz com ele duas
doenças parciais: a disfunção original
e a reação de sua personalidade a ela.
Não há disfunção sem a concomitante
psíquica e somática. A intensidade e o
grau desta reação ao sofrimento variam
conforme a maturidade do paciente. Do mesmo modo, a
maneira pela qual ele vai entrar em contato com o médico
depende do tipo de relações que ele mantém
e do nível cultural de que dispõe. Assim,
há o paciente que espera do médico poderes
mágicos e aquele que anseia por um profissional
capacitado para livrá-lo da doença. Não
raro, o primeiro sai frustrado do relacionamento limitado
que se estabelece, pois constata que o médico
não é divino. Já o segundo, tem
probabilidade de encontrar identificações
e colaborar eficazmente com o médico, facilitando
de forma ampla a tarefa deste. Em geral, o que o paciente
deseja do médico está implícito
no primeiro contato entre eles. Uns querem milagres,
atenção, carinho e apoio. Outros buscam
soluções técnicas, vindas de alguém
que conquistou sua confiança e de quem esperam
sensibilidade, compreensão e bondade.
Os
pacientes portadores de uma personalidade mítica,
costumam ambular de um médico para outro, sem
jamais encontrar o ser onipotente e onisciente para
corresponder às suas carências. Os pacientes
de menor regressão, que buscam um médico
competente, ético e humanista, ao encontrá-lo,
reúnem condições para estabelecer
um vínculo, que será, a cada reconsulta
ou nova consulta, reforçado.
Mesmo
nos pacientes mais estóicos, a ansiedade e ao
menos um mínimo de regressão estão
presentes. Um fato que nunca deve ser esquecido ou desprezado
pelo médico. Com freqüência, essa
ansiedade é amorfa, mas sempre retrata o receio
de uma incapacidade para manter digna e significativa
sua vida. Além do mais, o paciente se apresenta
ao médico num ambiente estranho, num consultório,
clínica ou leito hospitalar. E seu objetivo é
o conforto, nunca o confronto. Existe, ainda, a singularidade
de cada paciente, seja na herança, nas experiências
prévias, no ambiente cultural e psicológico,
na educação, nas oportunidades, nos sucessos,
nos fracassos, nas fantasias, nos compromissos emocionais,
nas motivações, nos ajustamentos e soluções
conciliatórias que o enfraquecem ou amadurecem.
Os
pacientes desejam, acima de tudo, serem ouvidos e compreendidos,
já alertava Wilfred Trotter, neurocirurgião
inglês. Cabe ao médico, pois, auscultar
essa necessidade primeira, para, em seguida, motivá-lo
para lutar pela vida qualitativa a que tem direito.
Assim,
se forma a espécie de relacionamento que terão
o médico e seus pacientes, pois ao ouvi-los,
compreendê-los, auxiliá-los, e, enfim,
curá-los ou dirimir-lhes a dor, o médico
exerce também uma função social,
estabelecendo-se uma relação de reciprocidade.
Ademais, cria-se também um certo clima de gratidão
que acompanhará as procuras, o que se transformará
em um relacionamento duradouro, completo, sendo que
o médico saberá sempre como proceder,
diante dos males que vierem a sofrer seus pacientes,
pois tem ciência de suas circunstâncias
pessoais e de seu histórico orgânico e
psíquico. Este aspecto pode evitar a imensa estatística
de erros médicos ou de choques de emergência,
tendo em vista que o conhecimento prévio da situação
de saúde do paciente confere ao médico
a observação obrigatória de determinados
cuidados e de certas cautelas necessárias em
situações que se formam em caráter
de urgência. Neste sentido, é de se ressaltar
a importância do ideal relacionamento entre o
médico e seus pacientes.
d)
Reciprocidade: tipo ideal de relacionamento médico-paciente.
“Um
médico vai ver um doente e lhe diz: Estamos aqui
três presentes, você, eu e a doença.
Se quiser ajudar-me a aceitar minhas indicações,
seremos dois contra as doenças, que ficará
sozinha e poderá ser derrotada por nós.”
(Elqueliubi, em “Autores Árabes”
de L. Machuel).
A sabedoria
árabe somada à lógica matemática
explicita com simplicidade a importância da reciprocidade
no relacionamento médico-paciente ideal. A iniciativa
em promover uma sadia cumplicidade é do médico
e para tanto ele faz uso de uma linguagem adequada à
compreensão do paciente. Conclama a colaboração
e participação direta deste para debelar
o mal que a ambos atormenta. Sensibiliza o paciente,
fazendo-o ver a importância de uma vontade ativa
para se livrar da doença. Mas, não abre
mão de dirigir e controlar o processo de cura,
que lhe é de competência e responsabilidade.
Uma
vez fundamentada essa reciprocidade, ambas as partes
saem gratificadas. Consciente de suas limitações
humanas e científicas, o médico se empenha
por inteiro para corresponder à confiança
do paciente por ele conquistada, apelando para a lógica
e o objetivo em comum, sem manipulação
ou coisificação. A abertura espontânea
de um para o outro é uma feliz descoberta, que
irá garantir um clima de naturalidade, franqueza,
confiança e harmonia ao relacionamento. A parceria,
obtida pelo sistemático empenho de ambos para
vencer a doença, e desafligir o paciente, geralmente
sobrepassa a cura e é comum dela resultar uma
amizade duradoura. Não há hierarquia imposta
e reina absoluto o respeito de um para com o outro.
Não raramente, o médico passa a ser um
consultor a todos os familiares.
Assim,
se forma o chamado “médico de família”,
hoje novamente reconhecido como indispensável
ao atendimento de cada membro e ao conjunto dos mesmos.
No
relacionamento ideal, a credibilidade do médico
é intransferível. Muitas vezes, na ausência
dele, o paciente prefere suportar por mais tempo o sofrimento
a consultar outro profissional. É que o vínculo
estabelecido e reforçado gradativamente, mais
a empatia e a identificação, representam
um bem valioso conquistado, do qual nenhum dos dois
quer abrir mão.
Capítulo
à parte deve ser reservado às condições
ambientais de higiene, silêncio e seriedade que
um consultório médico deve apresentar.
É ele, juntamente com a postura ética
e moral do médico, que propiciam ao paciente
a sensação de se sentir à vontade
para desnudar seu corpo e desvendar sua alma, nas etapas
do processo da mútua descoberta.
Assim,
constituído e preservado, o relacionamento irá
se transformando em crescente e renovador diálogo
de consciências, em que um descobre as qualidades
e dirime as aflições do outro, colaborando
para o recíproco crescimento interior.
e)
Tipos patológicos do relacionamento médico-paciente.
Alguém
pode apregoar que de qualquer relacionamento médico-paciente
advenha uma ajuda. Certo. Todavia, se nele não
estiver implícito o intuito de estabelecer um
vínculo para melhor servir à pessoa humana
enferma, não ocorre o relacionamento ideal. Há
somente um contato passageiro, cujo diálogo é
permeado de frieza e pragmatismo, sem intercomunicação
pessoal. O médico se limita ao enfoque sobre
o mal restrito, como se houvesse uma fragmentação
entre o órgão e o organismo restante.
E supõe que, curando a parte afetada, o estado
geral de sofrimento também desapareça.
Ledo
engano, no qual tantos esculápios incorrem. Não
atentam que os resquícios da doença, disseminados
por outros órgãos e pela mente do paciente,
restam negligenciados e que em curto e médio
prazo essa alma não tratada irá precipitar
o surgimento de novas doenças. E, ao dar o doente
como curado, o médico fez esvair-se uma chance
preciosa de estabelecer um vínculo, única
via eficiente para curar efetivamente o paciente.
Não
raro, por suas limitações e negligências,
o médico se fecha ao diálogo, impedindo
que a comunicação ocorra, e que evolua
a ponto de uma confissão. Este comportamento
denuncia que também ele pode estar enfermo e
a sua disfunção será um entrave
para a criação de um tipo ideal de relacionamento.
Então, este se configura como mero contato, na
maioria das vezes negativo às duas partes envolvidas,
limitado a um atendimento linear, de um emissor para
um receptor.
Quase
automaticamente, o paciente emite queixas e sintomas,
o médico ouve, constata e medica. Não
há de fato a intenção de firmar
um relacionamento, e o contato resulta fugaz, bitolado,
frio e insuficiente.
Nos
países subdesenvolvidos em que o atendimento
à saúde da população não
é considerado prioritário, o médico
premido pela ameaça de proletarização,
não recebe o devido respeito e esta frustração
é projetada sobre o paciente. Sem o estímulo
proveniente das políticas de saúde, sem
condições ideais de trabalho, sem compensação
salarial justa, sem apoio mediante oportunidades para
reciclagem sistemática, o médico projeta
sobre o exercício da profissão e sobre
o paciente circunstancial a situação por
ele vivenciada. Ferido em sua própria cidadania,
tende a ignorar a do paciente, que se torna um número
a mais nas estatísticas de atendimento.
Este
médico, em geral presente nos ambulatórios,
enfermarias, U.T.I.s da rede de hospitais públicos,
antes de considerado omisso e negligente, deve ser encarado
como vítimas do sistema. Também ele é
um enfermo social. O que acaba por impedir que desempenhe
o papel de propulsor da iniciativa para construir um
bom relacionamento com seu paciente.
Médico
e paciente se defrontam, então, ambos doentes
socialmente, carentes de cidadania, sem condições
de fazer parceria contra a doença orgânica,
vitimados pelo desequilíbrio emocional. É
o que sucede quando um médico desestabilizado
encontra um paciente paranóico, avesso ao diálogo,
disposto a impor perante o esculápio, o diagnóstico
que lhe serve. Em geral, este paciente já passou
por vários médicos, é um céptico,
e por dispor de parcos conhecimentos sobre seu mal,
tenta estabelecer um monólogo na anamnese. Por
suspeitar que sua cura seja incurável, mais questiona
que informa. O paciente paranóico encara a ocasião
como parte de um período obrigatório que
ele empreende através de variados consultórios
médicos e seu interesse maior não é
o de implementar um relacionamento e curar-se. Assim,
da anamnese advêm informações previamente
selecionadas e a intercomunicação é
insatisfatória. Interessa-lhe mais colher informações
do próprio médico, cuja avaliação
ele irá passar adiante na infindável narração
dos pormenores supérfluos, resultantes de seu
contato com o profissional, sempre acrescidos de pontos
e fatos imaginados pelo doente.
Nas
ocasiões em que um médico desestabilizado
encontra um paciente equilibrado, este faz o discernimento
entre a pessoa humana do médico e o gabarito
profissional que ele apresenta. Do contato, em geral,
é o médico que se detém somente
nos aspectos negativos do paciente, embora o diagnóstico
correto e a terapia adequada sejam, para ele, ponto
de honra. Porém, o objetivo precípuo que
move o esculápio não é o de restabelecer
a saúde integral do paciente, e sim o de acrescentar
mais uma massagem ao seu ego.
Vezes
há em que os entraves para um bom relacionamento
são resultantes das falhas de personalidade do
médico. Negligente para com a ética e
a moral, este tende a tratar o paciente como uma doença
e não como uma pessoa humana enferma. O diálogo
é ríspido e linear, pois é o lucro
que mais interessa ao médico, em geral narcisista,
adorador de si mesmo, que se mostra como ator e personagem
central de uma peça — o contato com o paciente
— tem no paciente um expectador passivo, regressivo,
sem percepção do que lhe está ocorrendo
internamente, mas sensível o bastante para perceber
que está sendo objeto e não um dos sujeitos
do encontro. Na verdade, este encontro, no sentido amplo,
não se verifica por desinteresse total do médico.
Ao
médico equilibrado que se depara com um paciente
extremamente regressivo, — situação
mais comum — são exigidos esforços
intermitentes, conhecimentos gerais sobre o comportamento
humano e dedicação integral. É
que a doença fez o paciente voltar aos tempos
de infância, quando era prisioneiro de temores,
insegurança e imaturidade. O fenômeno da
regressão, que atinge a grande maioria dos pacientes,
— até os próprios médicos
quando enfermos — vem sendo objeto de estudo intermitente.
Ela descaracteriza a personalidade do paciente que,
ao contatar com o médico, não apresenta
a maturidade ideal para estabelecer um bom relacionamento.
Cabe ao médico, concomitantemente com a atenção
à doença propriamente dita, eliminar as
amarras regressivas, devolvendo ao paciente condições
de enfrentar a moléstia de forma adulta, participativa
e consciente. Neste item, é importante que o
médico forneça ao paciente ampla informação
sobre seu estado geral.
Quando,
porém, esse paciente regressivo encontra um médico
desestabilizado emocionalmente, o relacionamento se
torna impossível. O contato é tumultuado,
a informação é parca e fragmentada
por parte do paciente e não há um mínimo
de interesse em fornecê-la por parte do médico.
Não evolui um diálogo, porque o hedonismo
de um e a imaturidade circunstancial do outro não
permitem a menor comunicação. O paciente
está em busca do calor materno e da segurança
paterna, e tem diante de si um pretenso dono da verdade
absoluta, incapaz de se ligar afetivamente com ele.
Estas
distorções e outras mais que proliferam
na prática médica, além de impedir
que o relacionamento médico-paciente resulte
gratificante e reverta o estado doentio do paciente,
são também algumas das causas de descrédito
por que passam Medicina e médico no mundo moderno.
Elas estão, outrossim, por trás do crescimento
do misticismo religioso e da magia.
f)
Etapas do processo de relacionamento médico-paciente.
A
rigor, são três as etapas implicadas no
relacionamento médico-paciente: a anamnese, o
exame clínico e o tratamento. Na primeira, o
médico cria o ambiente para a explanação
por parte do cliente de todas as queixas, dos males
por ele sentidos, que são, em suma, a razão
de ter procurado o médico. É através
deste depoimento, ao vivo, que o médico vai,
gradativamente, coletando a informação
que lhe é indispensável. É ele
quem conduz o diálogo, embora mais ouça
do que fale. Da informação obtida, ele,
atenta e agilmente, vai se inteirando da história
objetiva do paciente, selecionando os dados mais importantes
na respectiva ficha e adquirindo conhecimentos fundamentais
ao diagnóstico.
É
na anamnese que o médico assenta os primeiros
tijolos na grande construção que será
um bom relacionamento contínuo entre ele e o
paciente. Selecionando os dados mais importantes na
respectiva ficha, quanto mais farta, detalhada e clara
a informação, tanto mais fácil
se torna para ele o diagnóstico diferencial.
Pode-se dizer que estas informações sejam
a argamassa da construção. Uma anamnese
incompleta, por demais rápida e insuficiente,
pode retardar o diagnóstico, confundir o médico,
frustrar o paciente e, conseqüentemente, prolongar
o período de sofrimento. Nesta etapa inicial,
o médico é todo ouvidos, embora sua mente
esteja em pleno raciocínio.
O exame
clínico que se segue à anamnese trará
ao médico a confirmação ou não
de um suposto diagnóstico. Nele, o médico
garimpa, através do uso de todos os seus sentidos,
sinais e respostas confirmatórios de suas suspeitas.
O exame clínico é um recurso por excelência
esclarecedor, que complementa a parte oral que foi a
anamnese. Também ele deve ser detalhado, pormenorizado,
compreendendo o corpo por inteiro do paciente. A comunicação
é ágil, toda feita de perguntas e respostas
breves e sucintas. Mesmo assim, o exame clínico
é uma espécie de caixa de Pandora, pois
fornece ao médico dados não revelados
pelo paciente anteriormente. Ao procurar cuidadosamente
os sinais e sintomas, o médico invariavelmente
se surpreende com dados novos. Começa a longa
e minuciosa costura mental do raciocínio clínico:
transformar as embaralhadas informações
da anamnese e os achados do exame clínico em
possibilidades de diagnóstico. Não raro,
para o diagnóstico diferencial, ou para a confirmação
de suas suspeitas, o médico solicita o apoio
de exames laboratoriais. Esta solicitação
tem que levar em conta a relação causa/efeito
da situação econômica do paciente.
A triagem do que seja exame indispensável, é
de competência do médico. Nesta etapa,
ele é todo observação, sua expressão
oral é mínima e todos os seus órgãos
de sentido estão a serviço do raciocínio
clínico.
Findo
o exame, vem a etapa do tratamento, que tem início
com a informação esclarecedora ao paciente
do que o médico viu, sentiu, observou, palpou,
percutiu, auscultou, e do que supõe seja a causa
do estado geral do paciente. Nesta etapa, é ele
quem fala, argumenta, justifica, esclarece, explana
e orienta. Se o médico, na primeira consulta,
não dispuser de certeza suficiente para fazer
o diagnóstico, deve colocar a par de suas dúvidas.
Não há obrigação de um diagnóstico
imediato e nem são as dúvidas sinais de
incompetência. São, sim, demonstração
de seriedade profissional, humildade e franqueza. Qualidades
inerentes ao bom relacionamento médico-paciente
e que, no devir, irão lhe garantir credibilidade,
confiança e respeito.
Na
extensão dessas três etapas fundamentais,
estão as possíveis visitas domésticas,
hospitalares — nos casos de internamento —,
a reconsulta, e a continuidade do processo de tratamento
até à cura.
Quanto
aos casos de diagnóstico, cuja cura é
imprevisível ou mesmo duvidosa, cabe ao médico
optar entre expor ao paciente a situação
concreta ou omiti-la. Como critério a ser adotado
além da sua precaução, ele deve
atentar para o psiquismo do paciente, que pode reagir
de maneira positiva ou negativa à exposição
de uma realidade cruel. No caso de uma opção
por não contar, os familiares devem ser notificados
sobre a gravidade da doença.
Todas
as etapas que formam o relacionamento médico-paciente
são essenciais não apenas ao diagnóstico,
tratamento, cura, mas também na colaboração
eficiente à implantação de uma
relação salutar e reciprocamente gratificante.
g)
A linguagem médica.
A
diversidade de tipologias concernentes ao relacionamento
médico-paciente é heterogênea e
especificada. Variam as personalidades dos médicos
e variam aquelas dos pacientes. Assim, um mesmo médico
tem necessidade de recorrer a variados tipos de linguagem
conforme o contexto cultural e a faixa etária
de cada paciente. Se a linguagem do médico for
linear e homogênea, existirá o risco de
compreensão parcial ou incompreensão total
por parte do paciente, e, conseqüentemente, o próprio
relacionamento será prejudicado.
Por
estar presente em todo o decorrer da vida humana, o
médico caminha “pari passu” com as
fases etárias. O pediatra, por exemplo, inicia
uma linguagem específica e desenvolve a habilidade
de interpretar os sons humanos, desde os primeiros vagidos
do bebê. Outra é a linguagem para as crianças
e outra ainda para os púberes. Já o médico
que tem diante de si um adolescente precisa desenvolver
outro tipo de linguagem, pois os jovens dispõem
de um vocábulo próprio e uma forma de
comunicação característica, quando
não subjetiva.
Diferem
também as linguagens adotadas para um paciente
adulto e um idoso, este mais carente de atenção
e afeto que o primeiro.
De
qualquer forma, a linguagem do médico requer
uma elasticidade mais ampla, variando também
de acordo com a personalidade de cada paciente. Num
consultório médico, adentram pacientes
equilibrados, agressivos, deprimidos, oligofrênicos,
apaixonados, com tendências ao suicídio,
alcoólatras e dependentes de outras drogas. Para
cada um, o médico necessita desenvolver um tipo
de linguagem e uma forma específica de comunicação.
O evolver
do relacionamento pode, ainda, suscitar no paciente
dependência emocional e até chegar ao extremo
de uma ilusória paixão. Ante tais situações,
que se interpõem e prejudicam a evolução
normal do relacionamento, deve o médico adotar
atitudes e palavras esclarecedoras, sem fazer uso da
linguagem direta para não ferir as suscetibilidades
do paciente.
Este
capítulo da amplitude da linguagem médica
para com cada espécie de paciente, foi tema de
um livro, “Conversando com o Paciente”,
de autoria do médico Brian Bird, de grande aceitação
no mundo científico. Tendo lavrado no citado
livro tanto suas próprias experiências
como aquelas de seus colegas, Bird alerta ainda sobre
a importância de um tipo de comunicação
específica para com os pais, familiares e responsáveis
pelo paciente, aborda também aquela necessária
aos médicos que atendem primeiros socorros e
aos que prestam serviços em enfermarias ou ambulatórios.
Assim,
o aprimoramento da técnica do diálogo
constitui-se necessidade básica e prioritária
para o estabelecimento de um modelar relacionamento
médico-paciente.
h) A ética no relacionamento médico-paciente.
São
três as responsabilidades da Medicina: a geração
e transmissão de conhecimento científico,
a utilização desse conhecimento na promoção
da saúde individual e comunitária, e o
julgamento de cada ato médico que vier a afetar
diretamente um outro ser humano. A síntese é
de Walsh Mc Dermott, mas a importância exercida
pela ética no comportamento social e no relacionamento
médico-paciente impede que ela seja abordada
“in profundis” e “au complet”
nos compêndios correspondentes. A ponto de uma
nova disciplina ter sido criada em função
dela: a bioética.
A ética,
imprescindível portanto à excelência
do relacionamento médico-paciente, deve fundamentar
a postura, as ações, atos, atitudes, opções
e decisões do médico, especialmente nos
momentos mais confusos e tumultuados, para evitar que
ele se torne presa de dois trágicos extremos,
— a precipitação e a indecisão
— com trágicas conseqüências
sobre o próprio médico, sobre o paciente,
sobre a família e sobre a instituição.
O mais
recente Código de Ética Médica
brasileiro, legitimado pelo aval da sociedade e da comunidade
específica, é um instrumento fundamental
na regulação das relações
dos médicos com a sociedade, particularmente
naquelas por ele empreendidas com o paciente. Nele estão
apenas as orientações para a realidade
da prática médica hodierna, mas também
a perspectiva e o compromisso da transformação
dela.
Reza
o Código que entre os princípios fundamentais
da Medicina estão: a proibição
a qualquer tipo de discriminação e preconceito
para com o paciente, a comercialização
da prática médica, o máximo de
zelo ao aspecto profissional e ético da profissão,
a reciclagem constante, o uso do melhor progresso científico
em benefício do paciente, respeito absoluto pela
vida humana — recusando-se a utilizar seus conhecimentos
para gerar sofrimento físico ou moral e a colaborar
para o extermínio do ser humano, seja diretamente,
seja no acobertamento de atos cometidos contra a dignidade
e integridade deste — preocupação
sistemática para com o meio-ambiente, empenho
para o aprimoramento dos serviços médicos
e solidariedade para com os movimentos de defesa da
dignidade profissional, quer na luta por remuneração
condigna, quer nas reivindicações por
condições de trabalho compatíveis
com o aprimoramento técnico da Medicina e com
o exercício ético-profissional.
O respeito
deve pautar as relações do médico
consigo próprio, com seus colegas e com seus
pacientes e familiares. Um respeito que se amplia em
solidariedade, mas que não pode incorporar o
vezo corporativista.
A omissão
do médico ao se deparar com atos inescrupulosos
de colegas, supostamente em nome da ética, muito
além de ratificar a impunidade, atinge pacientes,
a classe médica, a sociedade, e, como bumerangue,
a si próprio, de vez que colabora para a generalização
errônea de que a classe médica seja uma
“máfia de branco”.
No
caso específico, o critério-ético
recomenda a denúncia visando ao bem-comum e não
a omissão sob a alegação de preservar
o conceito do colega inidôneo. Em geral, lamentavelmente,
impõe-se a visão corporativista, bem como
a autodefesa, considerando os riscos implicados numa
denúncia. Porém, ao omitir-se, o médico
não atenta para as conseqüências trágicas
que seu silêncio irá projetar sobre a sociedade.
Outro
ponto de máxima importância ética
é o sigilo profissional, vulgarmente chamado
de segredo médico, que diz respeito às
informações confidenciais obtidas no desempenho
das funções médicas, particularmente
no relacionamento médico-paciente. Sigilo esse
que só poderá ser quebrado no caso em
que os interesses maiores do paciente ou da comunidade
estejam envolvidos. A tradição médica
narra lamentáveis casos em que o sigilo profissional
foi usado para servir interesses próprios e de
manipulação indigna.
A postura
ética está na raiz do relacionamento médico-paciente,
que se deturparia se despojado dela. É ela que
deve nortear e matizar a práxis diuturna do médico.
É ela também o critério maior nos
casos de dúvida e decisões fundamentais.
Por último, é também ela que irá
garantir a liberdade e a segurança profissional,
bem como as do paciente, e o respeito da comunidade.
i)
O relacionamento médico-paciente específico
dos Centros de Emergência Médica.
O
crescimento populacional incontrolável, nas grandes
e médias cidades, causado pela falta de políticas
pertinentes, pelo fenômeno das migrações
e pela inobservância negligente às leis
preventivas de acidentes nos locais de trabalho, como
também o desenfrear da violência, são
algumas das justificativas à relevância
que os Centros de Emergência Médica estão
adquirindo nas sociedades atuais.
Também
nesses Centros se configura um tipo de relacionamento
médico-paciente específico.
Ainda
que se caracterizem pela emergência, urgência,
imprevisibilidade e exigüidade de tempo para implementar
um relacionamento ideal, os atendimentos de pronto-socorro
exigem um preparo profissional adequado e atualizado,
conforme as mais modernas técnicas de salvamento.
Também aqui, o médico deve estar munido
de comportamento ético, humanismo e agilidade
de raciocínio. Também aqui, ele precisa
estabelecer um relacionamento que, embora caracterizado
pela fugacidade própria da emergência,
venha a criar um elo antes inimaginado.
Há
casos em que o paciente se encontra inconsciente, ou
apresenta um nível de consciência deprimido,
impedindo a formação de um relacionamento
recíproco. Resta ao médico a total responsabilidade
de prestar o primeiro atendimento sem dispor de uma
história clínica nem de mecanismo do trauma.
Evidentemente,
essa lacuna não impede que o elo de ligação
possa ser iniciado, tão logo o paciente recupere
o nível de consciência. Embora prejudicado,
na primeira hora, pela inexistência ou insuficiência
de anamnese, pelo exame físico sumário
e pela necessidade premente de retirar o paciente do
local do acidente, o relacionamento ocorre. Numa segunda
hora, lá no centro hospitalar, esse relacionamento
deverá ser recrudescido, podendo se converter
em vínculo sólido e até duradouro.
Outras
características apresentam esse tipo de atendimento:
os pacientes, em geral, são portadores de seqüelas
pós-trauma — neurológicas ou ortopédicas
— portanto politraumatizados, e, além das
lesões, apresentam uma deterioração
do estado psicológico. O prognóstico de
tal paciente irá depender em muito da qualidade
do atendimento e do relacionamento que ambos, médico
e paciente, venham a afirmar. Porque se faz necessário
reintegrá-lo à sociedade e ao trabalho,
em plenas condições físicas e psicológicas
a este objetivo, o que irá depender do relacionamento
edificante entre ambos.
O médico
que atua num centro de emergência não dispõe
dos mecanismos comuns do clínico. É um
médico compreensivelmente estressado pelo ambiente
em que trabalha, pela necessidade de atender vários
pacientes ao mesmo tempo, pela triagem sucessiva e premente,
pelo trato com muitos riscos de vida, pela diversidade
de problemas sérios que tem diante de si. Mesmo
assim, é possível — ainda que muitas
vezes mais extremante — construir um relacionamento
saudável.
Os
Centros de Emergência Médica estão
hoje na linha de frente da Medicina e a resposta positiva
que vêm apresentando no atendimento médico
à população, capacita-os a se tornarem
imprescindíveis a esta. A tendência é
ampliá-los em grupos de atendimento domiciliar,
para dar continuidade ao tratamento após a alta
hospitalar, não apenas auxiliando o paciente
ao seu reingresso à rotina doméstica,
mas também possibilitando uma rotatividade maior
nos leitos hospitalares para o atendimento aos casos
de urgência, especialmente os cirúrgicos.
Tais grupos, compostos de clínicos, psicólogos,
enfermeiros e nutricionistas, se encarregariam de exercer
importante papel na recuperação integral
do paciente, incluindo a sublimação do
trauma pelo acidente. Mediante a atuação
deles, o relacionamento médico-paciente atinge
um nível de maior abrangência e possibilidades
de êxito.
CONCLUSÃO
Sendo
a Medicina uma profissão erudita e humanitária,
sua prática exige do médico qualidades
pertinentes, que deverão compor o complexo do
relacionamento médico-paciente.
A Medicina não é uma ciência e sim
uma profissão a ser aprendida, enraizada em outras
numerosas ciências, que devem ser aplicadas em
benefício do homem. A colocação
é de Walsh Mc Dermott, que completou a definição
dizendo-a como uma atividade humana voltada para o bem
de outrem, seja na área da saúde pública,
da “compaixão estatística”,
ou do tratamento do paciente em particular. É
ela também resultante de uma massa mutável
de conhecimentos, habilidades e tradições
aplicáveis à preservação
da saúde, à cura da doença e à
atenuação do sofrimento.
A mutabilidade
é uma constante na Medicina e a competência
médica implica na contínua busca de conceitos
sempre cambiantes, que devem ser renovados na medida
em que a própria Medicina sofre transformações.
Assim, a prática médica é muito
mais do que a mera aplicação dos conhecimentos
científicos a uma disfunção biológica
particular. Tem como “focus” prioritário
e propósito contínuo o bem estar do paciente.
Esta finalidade tão cristalinamente expressa
na teoria, na prática encontra pressões
e fatores inibitórios. Porém, é
inevitável que uma doença venha a tornar-se
simbolicamente uma entidade para o médico, que
precisa familiarizar-se com suas manifestações
e disfarces.
Na
prática da Medicina, o médico deve ser,
ao mesmo tempo e na mesma proporção, o
defensor do paciente e o adversário da doença.
Para tanto, o relacionamento que ele vai estabelecer
com cada paciente deve buscar o ideal da perfeição,
em que pese o prévio conhecimento de que as mútuas
condições humanas impedem que esse objetivo
se concretize plenamente.
É
preciso que o médico se aproxime física
e espiritualmente do paciente, não como quem
curiosamente se achega a um caso ou a uma peculiar doença
mas como pessoa humana cujas queixas e cuja dor imensa
transcendem às informações prestadas.
Para entrar em harmonia com o paciente, ponto de partida
para um relacionamento e o grande encontro, é
mister que ele aprenda “in totum” a realidade
histórica e contextual do paciente, que vê
nele o elo entre si e o mundo real. É dever do
médico guiar o paciente através da doença,
porque, mesmo quando o tratamento requer a presença
de outros profissionais, o elo inicial deve ser preservado
e aprimorado.
O relacionamento
ideal entre ambos deve ultrapassar a cura circunstancial.
Uma vez firmado o vínculo e sistematizada a comunicação
de consciências, uma vez ocorrido este grande
encontro de enriquecimento espiritual mútuo,
as futuras doenças que vierem a acometer o paciente
serão consideradas como oportunidade de reciclagem
e renovação do vínculo. Caem por
terra os temores, as expectativas, as dúvidas,
as inibições, as desconfianças,
enfim, todas as barreiras que comumente se interpõem
e dificultam a comunicação livre, frutífera,
enriquecedora. Ocorrem em substituição
a essas amarras, momentos de feliz permuta de experiências,
e a doença em seu todo é sistematicamente
vencida ou suportada com o mínimo de sofrimento,
pela ação da parceria definitivamente
firmada.
Por
essas razões, entre todos os aparatos que aumentam
o poder de observação do médico,
nenhum se aproxima em valor ao uso habilidoso das palavras
por ambos pronunciadas. Este uso é a principal
técnica de diagnóstico, e também
na terapia. A despeito dos efeitos quase miraculosos
dos auxílios mecânicos e químicos
de hoje, as palavras continuam exercendo papel essencial
no processo do relacionamento médico-paciente.
Para tanto, a técnica do diálogo precisa
ser continuamente estudada e desenvolvida e não
como costuma acontecer deixada e relegada à aprendizagem
acidental ou incidental. Porque o relacionamento entre
o médico e o paciente —que continua sendo
o fator central no bom atendimento médico —
se baseia fundamental e diretamente sobre o diálogo
entre eles.
Ora,
conhecer as causas imediatas da enfermidade é
se restringir somente aos momentos finais da história
da doença. Ao médico, cabe levantar o
véu da causa essencial e subjacente do problema.
Se o médico não tiver pleno conhecimento
das circunstâncias da vida do paciente e não
as considerar importantes, jamais conseguirá
compreender a incapacidade deste para reagir adequadamente
ao tratamento. Ademais, se a ansiedade não for
removida, continuará a consumir energia do paciente.
Às vezes, o médico não ignora a
importância do diálogo, mas, até
inconscientemente, deseja evitá-lo. Enxergar
além do óbvio, extrair do aglomerado confuso
de informações os fatos e sintomas essenciais,
diferenciar os itens destoantes e integrar os similares,
são objetivos que devem ser insistentemente procurados
pelo médico, são imperativos extremados.
A garantia
de um desenvolvimento eficaz e gratificante do relacionamento
médico-paciente depende, outrossim, do médico
assumir a autoridade que lhe compete, sem prejuízo
da identificação com o paciente. A aceitação
e o exercício desta autoridade pessoal e singular
é extremamente necessária, e deve ser
exercida sem qualquer vezo de autoritarismo, preconceito,
discriminação ou prepotência. A
sensação de que sua atitude é especial
e insubstituível nos cuidados ao paciente, a
compreensão total da incomparável responsabilidade
que lhe é atribuída, devem ser constantemente
renovadas. Somente assim, visando o legítimo
direito de penetrar intimamente na vida e na alma do
paciente, toda a “arte médica” —
inclusive o relacionamento com o paciente — atingirá
um nível acima do comum.
Coube
ao médico preservar a vida da última e
mais completa criação divina: o ser humano.
Neste prisma, é o médico o preservador
da obra do Criador, que Ele concebeu para viver em fraternidade
e comunicação inter-relacional. E a grande
porta de acesso a esta contínua comunhão
de corpos e espíritos, é o relacionamento
médico-paciente. Tendo como escopo principal
a preservação e a otimização
da qualidade da vida humana, esse relacionamento se
converte numa extensão da obra prima do Criador.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
1.
Código de Ética Médica –
Resolução do Conselho Federal de Medicina
nº 1.248/88 – 1988.
2. Blaya, Marcelo – Relação Médico-Paciente,
1991.
3. Prochmann, Régenis Bading – A visão
do Médico, 1982.
4. Ramon, Louis – Lições de Clínica
Médica Prática.
5. Harrison, Tr. – “Principal of Internal
Medical”.
6. Cecil – Tratado de Medicina Interna, 1927.
7. Bird, Brian – Conversando com o paciente.
8. Risak, Erwin – Olho Clínico (tradução
para o português de Dr. Raul Margarido).
9. Benevides, Walter – “Visitas de Médico”.
10. Machiel, L. – Autores Árabes.
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