RELAÇÃO
MÉDICO-PACIENTE NA VISÃO PSICOSSOMÁTICA
Geraldo Caldeira
Psicossomática - Teoria e Prática
INTRODUÇÃO
"Houve
uma época em que o homem e a natureza eram um.
Mas, com o tempo, o homem se distanciou não só
dela, mas dos deuses.
Ele
não os tinha mais junto de si, mas os guardava
na alma e nos momentos significativos de sua vida, com
eles compartilhava a alegria, o medo, a esperança.
Fazia, então, oferendas, ofertava flores para
ter uma boa colheita, para a fertilidade de jovens esposas,
para a vitória contra os inimigos, para uma boa
jornada na morte. Apelava às flores para chegar
aos deuses." (autor desconhecido).
Muitos
pacientes apelam à dor para chegar aos "salvadores".
Daí a minha afirmação anterior,
"adoecer, ou a dor é ser".
A
visão psicossomática coloca a doença
como dimensão de vida:
"Saúde
é a vida no silêncio dos órgãos"
(Leriche)
Pode-se
acrescentar que adoecer é, muitas vezes,
como o grito dos órgãos no silêncio
do sujeito.
A
medicina psicossomática é a medicina bio-psico-histórico-social,
ou "medicina da pessoa". "Os seres vivos
são seres históricos, no sentido de que
representam o resultado de uma longa seqüência
de modificações estruturais.”
Para
Alonso Moreira, o conceito de enfermidade consiste em:
Enfermidade Objetiva ou Enfermidade para o Médico
Ela
é pesquisada pelos métodos científico-naturais,
quantificável e objetivável.
Enfermidade Subjetiva ou Enfermidade
para o Paciente
Ela
é estudada pelos métodos de abordagem
psíquica. Estudam-se as vivências individuais
e histórico-sociais.
Fundamentalmente,
a postura psicossomática privilegia a articulação
das emoções e sua resposta corporal envolvida
nas queixas dos pacientes. Já me referi que,
articular a idéia de emoções como
estado permanente do corpo, sua participação
nos fenômenos do adoecer, de vivê-los e
expressá-los, torna-se a grande meta e verdadeira
prática da psicossomática.
Torna-se
fundamental assinalar a diferença entre:
Medicina Tecnicista versus Medicina Psicossomática
Doença,
dimensão de saúde |
X |
Doença,
dimensão da vida |
Doença
objetiva (para o médico) |
X |
Doença
subjetiva (para o paciente) |
Discurso
do Mestre (saber absoluto) |
X |
Discurso
do psicanalista (do não-saber) |
Baseada
nos exames complementares |
X |
Baseada
no discurso |
Paciente:
papel passivo |
X |
Paciente:
papel ativo |
Medicamentos |
X |
Principalmente
linguagem |
Cura:
Restitutio ad integrum |
X |
Reconstrução existencial |
RELAÇÃO
MÉDICO-PACIENTE
O
médico, ao atender a um paciente, pode ter a
sua atenção voltada para a doença,
para o doente ou para a relação entre
os dois. Desde os tempos de Hipócrates havia
discussão sobre existir doentes, seu ponto de
vista e o de existir doenças, ponto de vista
de Galeno, de Cós. O modelo holístico
da medicina, também chamado de visão sociopsicossomática,
privilegia a atitude médica que vê fundamentalmente
o paciente e o que ocorre na inter-relação
com seu médico. É a medicina do encontro.
Dois seres humanos que se colocam frente a frente, um
- paciente, suposto-sofrer, e outro - médico,
suposto-saber. Dessa forma torna-se sempre necessário
que o médico, de início, deixe de lado
o seu saber técnico e se coloque na posição
de ouvinte. Investido de uma sólida ética,
o médico deve iniciar o atendimento sempre com
respeito e dignidade, apresentando-se nominalmente e
identificando o outro, também nominalmente. As
perguntas iniciais devem ser de forma que propiciem
uma abertura ao paciente. Por exemplo: "Sr. (a)
Fulano (a)? O que está acontecendo com você?
Por que precisou vir à consulta hoje? O que está
pior em sua vida? O que está lhe incomodando
mais no momento?" Depois deve ficar em silêncio
e apenas observar. Cria-se um momento, um espaço-silêncio,
que será ocupado pelo suposto-sofrer. O médico
precisa ouvir e sentir seu paciente, sentindo o que
está acontecendo com o paciente e sentindo a
si mesmo já na inter-relação. Antoine
de Saint Exupéry disse: "Os olhos são
cegos. É preciso buscar com o coração."
É
preciso ficar claro que o que o paciente faz é
uma consulta. Ele vem em busca de compreender o que
está acontecendo em sua vida. O médico,
muitas vezes, esquecendo-se disso, assume um saber onipotente,
e pretende, numa única consulta, querer fazer
o diagnóstico, o prognóstico e ainda dar
sugestões sobre a vida do paciente, do qual,
certamente, ainda sabe muito pouco.
Conforme
Luchina afirma, "O homem tem um espaço para
a vida; este espaço é fixado pelos suportes
que sustentam sua existência. Quando o homem perde
o suporte, cai ao chão, e, ao cair, aparecem
as graves crises, que podem ser biológicas, psicológicas
e sociais." Torna-se claro, portanto, que só
se compreenderá o que está acontecendo
com o paciente se o seu mundo pessoal, familiar, cultural,
social e histórico for, progressivamente, observado
e apreendido. De início, o que o paciente quer
é respeito e atenção. Balint assinalou
isso muito bem, afirmando que "toda consulta médica
traz um pedido de amor". "Amor é a
doença e sua cura", afirma o personagem
do filme Shakespeare Apaixonado, quando ele
dá exemplos para a sua amada sobre o que é
o amor. Segundo Rubem Alves, "o amor vive no sutil
fio da conversação, balançando-se
entre a boca e o ouvido". Boca e ouvido do médico
e do paciente, sendo mais adequado o paciente usar mais
a boca e o médico usar mais o ouvido. Mas Balint
fala de que amor? É do que se expressa na atenção,
cuidados, carinho, reconhecimento e contato humano.
Tenho frisado sempre, ao longo da minha atividade, que
toda doença, a partir da consulta médica,
não é mais de um só (o paciente);
ela é de dois - médico e paciente -, no
sentido de sua compreensão, vivência e
destino. É semelhante à situação
do bebê. Da mesma forma, não existe bebê
sozinho, já que, quando falamos de bebê,
é sempre bebê-mãe, conforme Winnicott
assinalou muito bem. Segundo a conduta do médico,
a história da doença pode mudar completamente,
principalmente no seu tratamento e evolução.
O médico precisa ter sempre em mente a importância
dessa posição: o que dizer, por que dizer,
quando dizer, como dizer e a quem dizer. De sua palavra,
ou de sua omissão, muitas vezes uma grande chance
existencial acontecerá ou será perdida,
e às vezes para sempre. Outro aspecto importante
é a indagação. Quando o médico
fala, ele fala para quem? Quem está na sua frente?
Um indivíduo mentalmente adulto? Ou, apesar da
idade adulta, é um paciente regredido comportando-se
como uma criança? Compreenderá sua linguagem
científica? O médico falará para
o paciente ou para si mesmo? Em quem ou em que ele está
pensando quando fala? Essas indagações
só terão respostas adequadas se o médico
compreender que, verdadeiramente, nenhum atendimento
será correto se não propiciar uma leitura
ampla do paciente para que seja possível uma
abertura no caminho de uma reconstrução
existencial do mesmo. São inúmeros os
trabalhos que mostram a importância do estresse
na produção, sustentação
e evolução das doenças. E não
se fala em estresse sem que esteja inserido em seu conceito
uma indagação sócio-histórica.
O médico tem de sentir que esse encontro com
o seu paciente é histórico. E quando digo
seu paciente, não é por acaso, é
dele e de mais ninguém, mesmo que esteja sendo
atendido por mais de um. A relação fundamental
é com apenas um, da mesma maneira que uma criança
pode ter uma babá, avós, madrinhas etc.,
todas significativas para ele, mas a definitivamente
mais importante é a sua mãe (infelizmente,
nem sempre). É muito bom quando os dois podem
dizer "meu médico" e "meu paciente";
é uma oportunidade única. Ela não
pode ser perdida. Às vezes é a única
chance para a referida reformulação existencial.
É sabido que se cresce com o sofrimento. A Igreja
e a psicanálise mostram isso, todavia nem sempre
podemos crescer sozinhos diante dele. Pode ser paralisante,
ou mesmo destruidor, porque poderá ser superior
às forças do indivíduo. Com a ajuda
médica - o que estamos focalizando - numa posição
de co-participante, uma riqueza pode ser tirada do indivíduo
e deixada com o paciente para sua reconstrução,
crescimento e fortalecimento. Há momentos em
que é a única coisa que o ser humano pode
criar. Com sua doença ele faz uma ponte com a
esperança; pela dor e pelo sofrimento tenta encontrar
quem lhe segure em quedas existenciais. O médico,
nessa hora, não é para se colocar no lugar
do saber-ciência, belos diagnósticos de
doenças, únicas a serem tratadas. Agindo
assim, é como cortar a corda na qual o paciente
está pendurado, fragilmente sustentado. Suas
queixas, suas dores e mesmo as doenças apresentadas
têm de ser respeitadas durante o tempo que se
fizer necessário. Como diz Benoit, "O indivíduo
é co-criador de sua biologia, de seus sintomas,
de seu destino e portador de uma anatomia psíquica."
A idéia de cura que passa pelo eixo diagnóstico-tratamento,
clínico ou cirúrgico, pode estar a mil
léguas do sujeito enquanto ser humano. Cura-se
o quê? Tiram-se os sintomas? Tratam-se os órgãos
doentes ou supostamente doentes? Pura ilusão
de saber, que visa tranqüilizar a angústia
do não-saber médico e do seu apostolado.
Afinal de contas, os médicos trazem dentro de
si, no recôndito do seu inconsciente, necessidades
que se articulam com projetos de reparação
e cura de quem estiver doente. De onde vem isso? Vocação
médica. Vocação vem do latim vocare,
que significa chamar. Quem o chama? Por que se sente
chamado para essa missão? Certamente as respostas
são múltiplas, mas, em todo chamado médico
está bem escondida no inconsciente a identificação
com o exercício de reparação e
cura, respostas a sentimentos e fantasias infantis de
ter causado danos ou por ter ferido figuras parentais
fundamentais do seu meio. Por isso se angustia terrivelmente
diante do que vive como fracasso nessa sua missão.
Sua censura e autocrítica não lhe perdoam.
Na visão sociopsicossomática, holística,
o médico precisa aprender a mudar a necessidade
de curar para atender. Isso significa poder estar ao
lado, ajudar, compreender, alegrar, aliviar até
o fim da vida a quem ele atende. Caso contrário,
não dará conta de atender doenças
incuráveis ou terminais. Estar ao lado do paciente
que caminha para a morte não é um fracasso,
mas verdadeiramente uma vitória. Poucos dão
conta disso, presentes ali, fortes, firmes, sustentáculos
para que muitas vezes o moribundo lhe passe seus últimos
pedidos, desejos, medos e segredos. Não é
só na chegada que se pode ter alegrias, mas também
em muitas despedidas. Junto à dor da perda fica
a alegria de ter podido estar ali, no que estamos focalizando,
quando a sua mão foi a última em que o
enfermo segurou e dela deslizou para o além.
Na posição de atender, cria-se um espaço
para o paciente se colocar. Ele vai preenchê-lo
com fantasias, ilusões, desilusões, suas
tristezas, revoltas e apresentar seu comportamento habitual
com os que lhe circundam e com o mundo. Esse comportamento
provocará no médico respostas e sentimentos.
Nesse momento, ao invés de agir ou falar precocemente,
o médico procurará tirar dos seus próprios
sentimentos a compreensão da mente e do funcionamento
psíquico de seus pacientes. Assim, se sente raiva,
medo, tristeza, dó, tédio, antipatia etc.,
perguntar-se-á: "Por que ele age assim?
Por que precisa provocar essas reações
nos outros? O que ganha com isso ou por que tem de ser
assim?" Em vez de emoção, o médico
responde com compreensão. Mostra isso ao paciente.
Utiliza suas próprias emoções em
benefício do outro. Com isso consegue, também,
tirá-lo do lugar passivo de doente que está
ali para ser tratado, sem querer se ver nas próprias
queixas, desejando receber de pronto a solução
para os seus problemas. Certamente, dessa forma, caminhará
na compreensão de si mesmo e do que tem a ver,
de sua parte, com o que está acontecendo. No
livreto de Wilson Trópia, Uma Nova Educação
para o Homem, encontra-se a citação
"A Busca da Identidade".
“Há
cerca de 600 anos, um mestre de idade, coberto de honrarias,
estava à beira da morte, quando os seus amigos
e discípulos lhe perguntaram:
- Mestre, o senhor está com medo da morte?
- Não, meus caros, da morte não, no entanto
estou muito preocupado com o meu encontro com o Criador.
- Mas, como – disse um dos discípulos -
. se você tem uma vida exemplar! Como Moisés,
você nos tirou das trevas da ignorância
e, como Salomão, fez julgamentos tão justos?
- Sim, eu sei, mas quando vier a me encontrar com Deus,
Ele não perguntará se eu fui sábio
como Moisés ou se fui justo como Salomão,
não... O Criador me perguntará uma coisa:
se fui eu mesmo.”
Pois
bem, com adequada relação médico-paciente,
este precisa ser ajudado a sair do rótulo aprisionante
de doente e caminhar na direção da sua
identidade, com suas adequações e inadequações
existenciais, enquanto ser vivo. Que identidade é
essa à respeito da qual Lacan disse “Qual
é, pois, este Outro a que eu sou mais ligado
do que a mim, visto que, no seio mais contido da minha
identidade, a mim mesmo é ele quem me agita”.
Esse Outro é a lei do desejo que fundamenta o
inconsciente. McDougall, a respeito desses sentimentos
escondidos, ao acompanhar pacientes que contraíram
tuberculose, disse: “Por não poder abrir
seus corações ao luto, abriram seus pulmões
ao bacilo de Koch.” É imperioso e ético
que o médico compreenda em que lugar o paciente
o está colocando, se pai opressor e dominador,
mãe tolerante e protetora, amante, amigo, dentre
outros, e responder não do lugar solicitado,
mas tentar compreender por que está sendo colocado
aí. Na psicanálise chama-se esse fenômeno
de transferência. Sempre que, numa relação
a dois, um dos participantes colocar o outro no lugar
do saber, esse fenômeno acontecerá ao longo
do tempo. Na relação médico-paciente,
significa que o paciente reage diante do médico
com emoções, sentimentos, sensações,
desejos e reações psíquicas que
foram utilizadas por ele em seu passado infantil, para
controlá-los ou escondê-los e endereçá-los
às figuras parentais, principalmente mãe
e pai. Agora tenta resgatar, com o médico, o
que ficou para trás sem ser resolvido. Dentre
essas reações, uma das mais freqüentes
é a reação amorosa. Apaixona-se
ou deseja a figura do médico, que se não
sabe ou não compreender o que está acontecendo
pode, desastradamente, responder ao pedido. Se ele o
faz inconscientemente, isto é, se sua resposta
tem a ver com o seu passado e acionado pelo paciente,
chama-se a isso de contra-referência, fenômeno
perfeitamente possível, já que o médico
também é um ser humano. Todavia, lamentavelmente,
na maioria das vezes quando o encontro amoroso se dá,
o médico simplesmente não compreendeu
o lugar em que foi colocado, mas responde como se fosse
para a sua figura real que o apelo amoroso foi dirigido
(aliás, isso também pode acontecer verdadeiramente).
Como
se observa, o campo da relação médico-paciente
é um campo dinâmico, cenário de
múltiplas emoções e acontecimentos.
Há que se criar uma aliança terapêutica.
•
Aliança: "ato ou efeito de aliar (-se);
ajuste, acordo, pacto"
• Relação terapêutica-paciente:
aliança a ser construída, a dois, passo
a passo
• Receptividade
• Confiabilidade
• Escutar olhando, olhar sentindo. Sentindo o
paciente e sentindo a si mesmo
• Importância da linguagem (discurso):
A) Mensagens
•
Dúvidas
•
Fantasias
•
Medos
•
Cobranças
B) O que dizer, como dizer, quando dizer, porque dizer.
• "Experiência relacional corretiva"
Lembre-se
sempre de que a relação médico-paciente
é, verdadeiramente, o primeiro e melhor remédio.
Como se consegue isso?
Surge,
pois, a imperiosa necessidade de que as faculdades se
preocupem também com a psicologia médica
(poucas já o fazem no país), sem a qual
o médico não se sente capacitado para
um posicionamento adequado para entender os fenômenos
anteriormente assinalados. Recebe das escolas e das
residências médicas muitas informações,
mas o que precisa mesmo é de formação
para se tornar médico. Precisa saber que cada
momento é singular, que o doente vive a doença
com o seu subjetivo, que o corpo que o médico
vê e examina não é o corpo que o
doente sente, simboliza e imagina. Como diz o cantor
Lulu Santos, "Nada do que foi será de novo
do jeito que já foi um dia. Tudo passa, tudo
sempre passará. A vida vem em ondas, como o mar,
num indo e vindo infinito. Tudo que se vê não
é igual ao que a gente viu a um segundo. Tudo
muda o tempo todo no mundo. Não adianta fingir
nem mentir para si mesmo."
Essa
é a característica da vida humana, uma
permanente transformação. O filósofo
Merlean Ponty afirmou: "Na enfermidade, os acontecimentos
do corpo tornam-se acontecimentos do dia."
O
escritor José Saramago, Prêmio Nobel de
Literatura, disse: "Habitamos fisicamente um espaço,
mas, sentimentalmente, habitamos uma memória."
A memória que muitos seres humanos habitam inclui
a memória das doenças, dos tratamentos
e dos remédios aplicados; fixam-se nela, muitas
vezes, esperando do médico sua compreensão.
Percebe-se, com freqüência, verdadeiros códigos
aprisionantes, memória paralisante, impedindo
o viver em busca de liberdade, não se dando o
"direito de ser feliz": Afirmou Marshall Bergman:
"Tudo que é sólido desmancha no ar.
Isso significa que o nosso passado, qualquer que tenha
sido, foi um passado em desintegração;
ansiamos por capturá-lo, mas ele é impalpável
e esquivo; procuramos por algo sólido em que
nos amparar, apenas para nos surpreendermos a abraçar
fantasmas". Este algo sólido, ilusório,
é a doença e/ou as queixas e a figura
do médico.
Como
ser de linguagem, só com o preciso uso desta
pode-se libertar esses pacientes. Veja o que Rubem Alves
diz: "O poder mágico da palavra está
em que ela pode trazer à vida aquilo que estava
sepultado no corpo”. Os dois, se aproveitarem
do que pode ser um belo momento, certamente crescerão.
É notório, entretanto, que sem estar preparado
para essa verdadeira aventura existencial, é
preferível o médico não começá-la.
Ao convidar o paciente para falar sobre a sua vida,
deve saber se ele quer, quando vai querer e de que forma
irá fazê-lo. Uma paciente, certa vez, ao
lhe ser perguntado de início o que mais lhe incomodava,
respondeu que "era um vizinho que chegava de repente
em sua casa pela porta da cozinha. Ela gostaria que
ele tocasse a campainha da porta da rua e esperasse
para ela atender". Apesar de o fato ser real, nesse
instante ela estava também falando que eu deveria
respeitá-la e só deveria tentar entrar
na sua vida íntima (segredos) quando ela permitisse.
Outra, na segunda consulta, falou sobre o seu medo de
viajar e deixar a chave de sua casa com uma empregada
recente, que não conhecia bem ainda. Compreendemos
que ela, igualmente, estava nos falando que não
iria se abrir (sua casa) para mim, que ela ainda não
me conhecia e cuja relação médica
estava no início. Verdadeiramente, o que se propõe
é um caminho pela sua existência. Ele tem
de ser feito a dois e nos passos que o paciente puder
caminhar de início. Levá-lo apressadamente
a falar sobre os seus segredos e intimidade, de tal
forma que o próprio médico não
preparado se assusta, e por isso querer mudar o curso
do caminho, encaminhando-o precocemente para um especialista
da área de psicologia, caminho este que ele não
sabe e tem muitos preconceitos, é levá-lo
a ter a sensação de que foi traído.
Isso é antiético e agressivo à
sua pessoa. Muitos pacientes nunca mais procurarão
um especialista, pela precipitação como
foi indicado; outros procurarão outro profissional
médico, voltado apenas para a doença e
se contentarão com receitas apenas de medicamentos
ilusórios.
Mas,
afinal, de que pacientes estamos falando? Onde se encontra
o ser humano nesse momento histórico? Pense sobre
o que diz a respeito Cristovan Buarque: "Da
modernidade técnica à modernidade ética.
Nestes cem anos: a engenharia industrial realizou maravilhas
de automação, aumentou de forma inimaginável
as escalas de produção, mas não
ampliou substancialmente o tempo livre das pessoas e,
quando ampliou, jogou milhões no tédio
e nas drogas; não resolveu e até agravou
o problema da escassez entre uma enorme parcela da população
mundial, criou um sério desequilíbrio
ecológico, gerou um desemprego crônico;
graças à engenharia e à biotecnologia,
a agricultura do século XX é capaz de
produzir mais, em quase qualquer local, com muito menos
trabalho, em melhores condições, com uma
inimaginável produtividade, controlando a terra
e as epidemias, não conseguindo ainda controlar
o tempo, mas reduzindo muito os seus efeitos, mas
não resolveu e até criou o problema da
desnutrição; ao mesmo tempo em que
graças ao avanço técnico o homem
conseguiu criar riquezas em níveis não
imaginados poucas décadas atrás, a desigualdade
se ampliou entre os homens e entre as nações;
a ciência médica conseguiu quase dobrar
a média de vida das pessoas, conseguiu adiar
o envelhecimento, fazer transplantes e próteses
de órgãos, mas não conseguiu
fazer com que essas vidas mais longas fossem certamente
mais felizes; ao mesmo tempo em que conseguiu integrar
o planeta, o século XX desintegrou a sociedade
humana entre países e entre grupos sociais dentro
de cada país."
Por
essas razões, afirma muito bem, Eugênio
P. Campos, ex-presidente da Associação
Brasileira de Psicossomática: “Tarefa do
profissional de saúde na era da globalização:
fomentar relações de suporte com seus
clientes e com a própria equipe de saúde;
redescobrir a individualidade por meio do encontro interpessoal
e, assim, resgatar a saúde biopsicossocial”.
Para
finalizar, chamo a atenção para o modo
possível de atuação do profissional
de saúde. Vamos focalizar os dois modelos de
atuação:
Trabalho
X: "Ocupação Felicitária"
(Ortega)
A
palavra trabalho vem da raiz grega tri-palium,
que era a designação de um instrumento
de tortura semelhante à "canga de burro",
mesmo sabendo que sua origem latina (labor)
é bem diferente, tornando possível uma
elaboração a partir do trabalho.
A
maioria dos profissionais de saúde, especialmente
os médicos, hoje, nas condições
subumanas de trabalho, principalmente os que seguem
os modelos técnico-organicistas, está
sofrida e mesmo doente. Esta afirmação
é comprovada em: A Saúde do Médico,
de Alexandrina Meleiros. A "ocupação
felicitária", termo criado pelo pensador
chileno Ortega, define uma atividade na qual, quem a
exerce, se vê dentro dela, investe nela, sente-se
geralmente alegre e mesmo feliz. Um exemplo clássico
disso encontra-se no filme A Festa de Babete.
A atividade torna-se leve, "sem peso", bem
ao contrário da "carga" de trabalho.
Tem sido freqüente ouvir essa afirmação,
em experiências comunicadas no final dos cursos
de medicina psicossomática e/ou psicologia médica.
Para alguns, as mudanças foram redentoras.
REFERÊNCIAS
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Alonso Moreira, A. Teoria e Prática da
Relação Médico-Paciente,
1979. Editora Interlivros, Belo Horizonte, MG.
2.
Alves R. Tempos Fugit, agenda 2000.
São Paulo: Editora Printel.
3.
Balint M. O Médico, seu Paciente e sua
Doença. Rio de Janeiro: Livraria Atheneu
Editora.
4.
Benoit P. Psicanálise e Medicina: Teoria
e Casos Clínicos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editora, 1988.
5.
Buarque C. Desafios Éticos - da Modernidade
Técnica à Modernidade Ética.
Editora do Conselho Federal de Medicina, 1993.
6.
Exupery AS. O Pequeno Príncipe.
Rio de Janeiro: Editora Agir.
7.
Lacan J. Os Quatro Conceitos Fundamentais da
Psicanálise. Livro 11. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editora.
8.
Luchina I. Psicologia e câncer, Diálogo
Médico, 1979; 4: 7-8.
9.
Lulu S. Como uma Onda (CD). Geração
Pop. Warner Music do Brasil, 1993.
10.
Marshall B. Tudo o que é Sólido
Desmancha no Ar. A Aventura da Modernidade.
São Paulo: Editoro Cia. das Letras, 1986.
11.
McDougall J. Em Defesa de uma Certa Anormalidade.
Teoria e Clínica Psicanalítica.
Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1983.
12.
Meleiros AMSA. O Médico como Paciente.
São Paulo: Editora Lemos, 1999.
13.
Saramago J. Caderno de Lancelote, São
Paulo: Editora Cia. das Letras.
14.
Winnicott DJ. Textos Selecionados da Pediatria
à Psicanálise. Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves Editora, 1978.
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