Depois
de ter, uma vez apresentado a minha solução
do problema da indução, tentei segui-lo
nas suas ramificações até a sua
fase metafísica, como lhe chamei – muito
para lá do seu âmbito original. Mas a minha
exploração das ramificações
do problema da indução estaria incompleta
se desprezasse o problema da demarcação
entre ciência e metafísica. De fato, há
uma questão que quase sempre se me põe
mal eu tomo consciência de que na verdade não
acredito na indução, e que não
acredito sequer que a indução desempenhe
um papel significativo nas ciências. Essa questão
é a seguinte: abandonando-se a indução,
como é que se pode distinguir as teorias das
ciências empíricas das especulações
pseudocientíficas, não científicas
ou metafísicas?
Este é o problema
da demarcação. Ele resolve-se, sugiro
eu, aceitando a estabilidade, a refutabilidade ou a
falsificabilidade como sendo a característica
distintiva das teorias científicas. A partir
da formulação que foi dada, dificilmente
se poderá avaliar o seu significado. À
primeira vista, ele poderá até parecer
antes ser uma questão pedante do que um problema
com verdadeiro interesse. Pois o que significa um nome,
uma distinção, uma classificação
ou uma demarcação? Quando ansiamos por
saber, quando o nosso objetivo é aprender algo
acerca do Mundo, não nos preocupamos muito com
os compartimentos ou departamentos que possam ser atribuídos
ao que virá a ser o nosso conhecimento. Tal como
eu disse na introdução, assuntos e outras
divisões do saber são fictícios
e enganadores, ainda que possam ser de alguma conveniência
enquanto unidades administrativas. No que toca à
ciência e à metafísica, não
acredito de maneira nenhuma em algo como uma demarcação
clara. A ciência foi sempre, em todas as épocas,
profundamente influenciada por idéias metafísicas.
Certas idéias e problemas metafísicos
(como o problema da mudança, ou o programa cartesiano
de explicar toda a mudança através de
uma ação a distâncias a perder de
vista) dominaram, durante séculos, o desenvolvimento
da ciência enquanto idéias reguladoras;
ao passo que outras (como o atomismo, uma outra tentativa
de resolver o problema da mudança) se transformaram
gradualmente em teorias científicas. É
claro que também houve desenvolvimentos na direção
oposta: como os positivistas gostam de dizer, há
um número considerável de doutrinas metafísicas
que se pode demonstrar serem ecos de doutrinas da ciência
absoletas.
Pode-se exemplificar isto
graças à história do próprio
positivismo. Pode dizer-se que o próprio positivismo
e fenomenalismo de Mach foi, na sua origem, uma teoria
científica respeitável, concebida para
explicar a falta do sucesso do atonismo e de outras
teorias da estrutura da matéria, através
da hipótese de que muito simplesmente não
havia nenhuma entidade física tal como a matéria
ou a <<substância>>. Mach podia apontar
o sucesso da física fenomenalista – sobre
tudo a ter termodinâmica fenomenalista –
e as dificuldades lógicas fundamentais que entravavam
o caminho das tentativas de Boltzmann para explicar
a segunda lei em termos de uma estrutura atômica
ou molecular. A solução proposta por Mach
implicava que esses problemas, e todos os outros pertencentes
à <<substancia>> ou à <<matéria>>,
fossem pseudoproblemas, incluindo, claro, todos os problemas
respeitantes à <<estrutura da matéria>>.
Mas devido ao trabalho de Einstein de 1905 sobre o movimento
browniano, estabeleceu-se o pleno significado das teorias
de Maxwell e de Boltzmann. O movimento browniano alcançou,
através da interpretação de Einstein,
o estatuto de um experimento crucial. E, como o próprio
Einstein assinalou, a existência de movimento
browniano refutava a versão fenomenalista da
termodinâmica. Com isto, mostrou-se que o problema
da estrutura atômica da matéria era um
problema físico genuíno. Assim, a partir
de 1905, o positivismo e fenomenalismo de Mach tornou-se
cada vez mais metafísico, num dos sentidos preferidos
pelos positivistas: tornou-se um caso de física
obsoleta que os cientistas enquanto cientistas tinham
abandonado, mas que continuava a perdurar entre filósofos,
e entre cientistas, quando estes se transformavam em
filósofos – ou em apologetas, o que eles
de vez em quando fazem quando as suas teorias começam
a ficar em apuros (veja-se também a seção
113 mais adiante, isto é, a seção
21 de A Teoria dos Quanta e o Cisma em Física,
volume III do Pós-escrito).
Tal como estes exemplos
demonstram, não pode haver demarcação
clara entre ciência e metafísica; e o significado
da demarcação se é sequer que algum
há, não haveria ser sobreestimado. Apesar
disto, defendo que o problema da demarcação
tem um elevado significado. Tem-no não porque
haja algum mérito intrínseco em classificar
teorias, mas sim porque uns quantos e genuínos
e importantes problemas estão intimamente ligados
a ele; na verdade são todos os problemas da lógica
da ciência.
No início desta
seção, fiz referência a uma dessas
ligações: à idéia de que
o método indutivo nos dá um critério
de demarcação. Outra ligação
anteriormente referida – o problema da discutibilidade
das hipóteses científicas, e, portanto,
da racionalidade dessas hipóteses – está
é claro ligado com o problema da testabilidade
das hipóteses científicas. Podemos considerar
a testabilidade um certo tipo de discutibilidade: discutibilidade
por meio de argumentos empíricos, argumentos
que apelam à observação e à
experimentação. Uma terceira ligação
ao problema da indução é apresentada
pela maneira como eu distingui a quarta fase, ou fase
metafísica do problema da indução
das outras três fases lógicas e metodológicas
desse problema. Na sua quarta fase – isto é
enquanto de saber se existem leis naturais verdadeiras
– esse problema assumiu um caráter marcadamente
diferente do das fases anteriores, e essa diferença
reclamou uma elucidação urgente. Para
essa elucidação, o caráter existencial
do problema deu-nos a chave: os enunciados puramente
existenciais são impiricamente irrefutáveis.
Ao discuti-los temos de ter sempre presente a sua irrefutabilidade
empírica. O fato de os enunciados e os problemas
metafísicos poderem, não obstante, ser
discutíveis (ainda que de modo inconclusivo),
tentei-o estabelecer pelo expediente simples de os discutir.
O problema da demarcação
está também, é claro, intimamente
relacionado, tanto histórica como logicamente,
com aquele o que chamei, no começo da seção
2, o problema central da filosofia do conhecimento.
Porque o problema de como adjudicar ou decidir entre
teorias ou crenças em competição
leva, como disse nessa ocasião, ao problema de
decidir se é possível ou não justificar
racionalmente uma teoria uma teoria; e isto, por sua
vez, leva ao problema de distinguir entre, ou de demarcar,
teorias racionais e crenças irracionais, um problema
que freqüentemente é identificado (talvez
de forma um pouco irrefletida) com o problema de distinguir
entre, ou de demarcar, teorias empíricas ou <<científicas>>
de teorias <<metafísicas>>.
Assim,
o problema da demarcação é mais
do que uma questão de classificar teorias para
se ser capaz de lhes chamar ou «científicas»
ou «metafísicas». Ele dá,
na verdade, acesso a alguns dos mais fundamentais problemas
da teoria do conhecimento, e, assim, da filosofia.
Mas o problema da demarcação tem também
uma importância prática considerável.
Defrontei-me com este problema e com a sua solução
muitos anos antes de me ter começado a interessar
pelo problema da indução e antes de ter
percebido aquelas ligações entre o problema
da indução e o problema da demarcação
a que acabei de me referir. Isto foi em 1919, quando
comecei a suspeitar das várias teorias psicológicas
e políticas que reivindicavam o estatuto de ciências
empíricas, em especial a «psicanálise»
de Freud, a «psicologia individual» de Adler,
e a «interpretação materialista
da história», de Marx. A mim parecia--me
que todas estas teorias eram defendidas de uma forma
acrítica. Dispunha--se de um grande número
de argumentos em favor delas. Mas a crítica e
os argumentos contrários a elas eram vistos como
hostis, como sintomas de uma recusa obstinada em admitir
a verdade manifesta; e, por isso, eram enfrentados com
hostilidade e não com argumentos.
O
que eu achava mais impressionante e mais perigoso nessas
teorias era a pretensão de elas serem «verificadas»
ou «confirmadas» por um fluxo incessante
de provas observacionais. E, na verdade, assim que se
abriram os olhos, podia-se ver por toda a parte casos
que constituíam verificações dessas
teorias. Um marxista não era capaz de olhar para
um jornal sem encontrar em todas as páginas,
desde os artigos de fundo até aos anúncios,
provas que constituíam verificações
da luta de classes; e encontrá-las-ia sempre
também (e em especial) naquilo que o jornal não
dizia. E um psicanalista, fosse ele freudiano ou adleriano,
diria sem dúvida que todos os dias, ou até
de hora a hora, estava a ver as suas teorias a serem
verificadas por observações clínicas.
Mas
seriam essas teorias testáveis? Estariam realmente
essas análises mais bem testadas do que, digamos,
os horóscopos, freqüentemente «verificados»
dos astrólogos? Que acontecimento, que se poderia
conceber que, aos olhos dos seus aderentes, as falsificasse?
Não eram todos os acontecimentos imagináveis
«verificações»? Era precisamente
esse fato — o fato de que essas análises
batiam sempre certo, de que eram sempre verificadas
— que impressionava os seus aderentes. Comecei
a pensar que essa aparente força era, na verdade,
uma fraqueza, e que todas essas «verificações»
eram demasiadamente pouco válidas para serem
tomadas por argumentos.
O
método de procurar verificações
parecia-me pouco válido — parecia-me, na
verdade, ser o método típico de um pseudociência.
Apercebi-me da necessidade de se distinguir, tão
claramente quanto possível, este método
de um outro método — o método de
testar uma teoria tão severamente quanto se for
capaz — isto é, o método da crítica,
o método de procurar casos que constituam falsificação.
O
método de procurar verificações
não era apenas acrítico: promovia também
uma atitude acrítica quer em quem expunha quer
em quem lia. Ameaçava, assim, destruir a atitude
da racionalidade, da argumentação critica.
Freud
era, de longe, o mais lúcido e o mais persuasivo
dos expositores a que me estou a referir. Mas qual era
o seu método de argumentar? Freud dava exemplos;
analisava-os, e mostrava que eles se encaixavam na sua
teoria, ou que a sua teoria podia ser descrita como
sendo uma generalização dos casos analisados.
Por vezes apelava aos seus leitores para que suspendessem
as suas críticas, e indicava que iria responder
a todas as criticas sensatas em ocasiões posteriores.
Mas quando eu olhei um pouco mais de perto para uns
quantos casos importantes, descobri que as respostas
nunca tinham chegado. De forma assaz curiosa, porém,
muitos leitores estavam satisfeitos.
Para
mostrar que isto não são simples demonstrações
ou acusações vazias vou substanciá-las
com algum pormenor através da análise
da discussão que Freud apresenta das teses fundamentais
do seu extenso livro, A Interpretação
dos Sonhos, justamente considerado por ele e por outros
a sua obra mais importante. Seria crítica a abordagem
de Freud? |