A
MADRASSA UMA UNIVERSIDADE MILENAR
Jornal
da APM (Associação Paulista de Medicina)
Suplemento
Cultural - Ago/2002 - Coord. Guido A. Palomba
Duílio
Battistoni Filho - membro da Academia Paulista de História
..
Desde os
atentados de setembro de 2001, cresceu no mundo inteiro
um grande interesse pela cultura árabe por todos os
aspectos, que sejam políticos, econômicos ou culturais.
Neste pequeno estudo, vamos dar algumas notas sobre
as origens da universidade árabe, já que sua cultura
influenciou todo Ocidente.
No
mundo árabe a escola nasceu com mesquita de Medina,
construída no século VII pelo profeta Maomé e seus companheiros.
Desde então, e até o século X, todas as mesquitas foram
centros onde se instruíam os crentes da nova fé e se
imaginava religião. No entanto devido à progressiva
complexidade das estruturas da via social e dos valores
e regras que o governavam, a comunidade teve de enfrentar
novos problemas.
Um
século depois da morte do Profeta, ocorrida em 632,
novas formas de ensino tornaram - se necessárias e foram
criados círculos de estudo nas mesquitas, nos palácios,
nas ruas e praças públicas. Essa transmissão do poder
não se limitava ao ensino do Corão, mas incluía literatura,
poesia, gramática, etc.
Na
praça do Mirbad, em Bagdá, reuniram-se círculos de gramáticos,
estudantes e curiosos; dentro de uma mesma mesquita
eram ministrados cursos de jurisprudência, poesia, gramática
e outros.
Esses
cursos e círculos constituíram uma espécie de universidade
livre, pois os mestres ensinavam o que sabiam sem
qualquer restrição ou obrigação, e os estudantes podiam
escolher livremente os cursos, debates e círculos que
desejavam seguir.
Essa
liberdade de ensino e aprendizagem revela uma profunda
coesão cultural e social. A transmissão de idéias através
de homens e de livros, assim como a contribuição de
diversas culturas que se vinham fundir no mesmo crisol,
permitiam à cultura árabe conhecer um desenvolvimento
um florescimento sem precedentes, em todas as esferas
do saber.Durante o reinado das califas abássidas (do
ano 750 até fins do século XIII), o ensino religioso
tornou-se disciplina independente; alguns mestres ocupavam-se
do Corão, do hadith (tradições do profeta) e
da jurisprudência, enquanto outros estudavam a língua,
a literatura e a história.
Nesse
período, os círculos de estudos multiplicaram-se e aprimoraram-se,
formando núcleos do que viria ser a madrassa (colégio),
destinada aos adultos que já haviam recebido o ensino
primário em escolas particulares ou em mesquitas.
A
partir do século X, a madrassa surge como instituição
independente e distinta da mesquita, embora sua criação,
pelo menos no início, estivesse reservada a um jurista
ou ao ensino de acordo com uma escola jurídica específica.
Em
pouco tempo esses estabelecimentos passaram a ser controlados
pelo poder público e a obedecer a seu planejamento.
O grau de controle e conteúdo do planejamento foram
de certa forma impostos pela própria natureza dos conflitos
surgidos entre a dinastia dos fatimitas e os califas
abássidas.
Os
fatimitas dominavam o Egito e a Síria desde 1969 e tentavam
tomar o poder do califa abássida de Bagdá, que governava
graças à força dos selêucidas e dominava, desde 1055,
e toda a parte oriental do mundo muçulmano.
Paralelamente
à luta pelo poder, desenrolava-se uma luta religiosa,
fato freqüente ni islã, onde os campos religiosos, políticos
e temporal encontram-se tantas vezes intrinsecamente
unidos.
Os
fatimitas difundiram sua doutrina, o chilismo, graçasa
uma intensa propaganda efetuada principalmente nas mesquitas
das regiões que não dominavam. Os selêucidas tentavam
opor-se à infiltração dos mensageiros do chilismo formados
na universidade de al-azhar, no Cairo, que era na época
o centro de ensinamento dessa doutrina.
Nizam
al-mulk (1018-1092), grão vizir dos abássidas, expressou
sua reação elaborando uma política pedagógica cujo objetivo,
a longo prazo, era conter e depois destruir o avanço
fatimita. A primeira aplicação prática dessa política
foi a criação da madrassa al-nizamiya (nome derivado
de Nizam al-mulk), a primeira universidade do mundo
árabe fundada pelos poderes públicos, era controlada,
financiada e administrada por eles.
Erguida
em Bagdá, centro político e intelectual do califato,
a Nizamiya representava na verdade muito mais do que
a primeira universidade pública. Desde a sua inauguração
oficial, em 1065 sob o patrocínio do próprio califa,
Nizamiya seria durante dois séculos, o modelo de todas
as madrassas do mundo muçulmano.
Modelo,
em primeiro lugar, por sua organização. Sua condição
de estabelecimento público consta explicitamente da
ata de fundação firmada por Nizam al-Mulk, diretor do
estabelecimento. Sua administração era controlada pelo
próprio vizir ou por seu representante. Cada estudante
recebia, para todo o período de seus estudos (de 4 a
6 anos), uma bolsa que assegurava suas necessidades
de alimentação e moradia. A madrassa dispunha
de vários alojamentos para professores e alunos, e sua
biblioteca recebia donativos e legados.
Modelo
em segundo lugar, pela forma de contratação do pessoal
docente. Os professores eram designados pelo diretor
de Nizamiya, ou por seu representante, de acordo com
certos critérios, dos quais o mais importante era pertencer
à escola chafiita. Eram pagos por um orçamento especial,
espécie de fundação inalienável.
Modelo,
finalmente, pelo ensino que fornecia. Embora os métodos
de ensino dependessem de cada professor (escolhidos
entre os grandes sábios e educadores da época), o conteúdo
da educação tinha um objetivo puramente religioso: capacitar
os estudantes a defenderem os princípios do chafiismo
ante a propaganda da fatimita e chiita.
A
madrassa era pois, um estabelecimento de ensino
de nível superior. Não ensinava apenas disciplinas religiosas
(ciências corânicas, jurisprudência, etc) mas também
a língua árabe, a literatura, a poesia, a aritmética...
Só podiam ser admitidos estudantes que já tivessem terminado
os cursos das escolas ou círculos das mesquitas.
Dois
séculos após a sua criação, o esplendor da nizamya foi
eclipsado pelo de outra madrassa, a Mustansiriya
(1227), cujo nome deriva do seu criador, o califa al-Mustansir,
que queria fazer da nova madrassa um centro intelectual
capaz de reviver as glórias culturais da época áurea
dos califas al-Mamum e Harum-al - Rachid. Essa escola
também deveria ser o centro do renascimento da cultura
árabe.
Diversamente
da Nizamya, a Mustansiriya não se dedicava ao ensino
de uma única escola jurídica, mas das quatro que existiam
no islã ortodoxo. Esta abertura intelectual se refletia
na arquitetura da madrassa, que apresentava quatro pórticos,
um para cada escola.
Além
das ciências religiosas, ensinavam-se muitas outras
matérias; matemática, medicina, farmácia, geometria,
etc. A Mustansiriya também se diferenciava da Nizamiya
pelo fato de ter apenas 308 alunos; 62 em cada escola
de jurisprudência, 10 no estudo do corão, 10 no hadith,
10 em medicina, e assim por diante.
Trinta
anos depois de sua fundação, Mustansiriya foi destruída
pelos mongóis, que tomaram e arrasaram Bagdá em 1258.
Os livros da madrassa foram atirados ao rio e os professores
afogados. Após o assalto, os conquistadores, mais tarde,
reconstruíram a madrassa, que continuou a desenvolver
suas atividades até a chegada dos turcos otomanos, que
convertem em pousada para as caravanas.
A
terceira grande madrassa, al-azhar do Cairo, continuou
sendo, até a queda dos fatimitas, o santuário do chiísmo
e o centro da informação de seus prosélitos. Quando
a dinastia ayubita chegou ao Egito (1171), al-Azhar
perdeu sua influência, que só veio a recuperar alguns
anos como centro de ensino do sunismo, ou seja, da ortodoxia
muçulmana. Al-azhar seguiu orientação das outras duas
grandes madrassas, e até o século XIII as três serviram
à mesma causa.
Mas
enquanto al-azhar continuou a se desenvolver e a exercer
influência em todo mundo islâmico, as duas outras madrassas,
esgotadas pelos danos causados pelos mongóis e divididas
pela ambição dos vários príncipes que reinaram na região,
acabaram por entrar em declínio e desaperecer, já azhar
e ainda hoje, depois da sua fundação em 1970, a maior
universidade religiosa do mundo árabe.
As
três grandes universidades do mundo muçulmano entre
os séculos XI e XIII Al-Nizamya, Al-Mustansiriya e Al-Azhar
- serviram de modelo e outras instituições criadas em
diferentes cidades do mundo árabe: a Zahiriya de damasco,
a Nasiriya do Cairo, a celebre zaituna de Túnis e não
menos celebre Qarawiyyin de fez em Marrocos.
Durante
quatro séculos essas madrassas desempenharam importante
papel não só no plano político e religioso - que determinou
sua criação - mas também na expansão e no aprofundamento
da cultura árabe - muçulmana. |